Camilo – cujo carácter volúvel e denodado talento para se lançar nos braços da ruína nunca lhe consentiram grande tempo para liberais aventuras políticas – dizia dos jovens revolucionários da Constituição de 22 que, antes de qualquer pronunciamento tribunício, “mordiam o cartucho”: no seu entender, por belas e tonitruantes que fossem (e eram!) as vozes de Garrett ou Herculano, os seus testemunhos e combates, respaldados em mundo e experiência, tinham por si só a autoridade suficiente para, contra a infâmia e contra a injustiça, erguer a luz sóbria de um verbo tantas vezes fundido no cadinho real do entusiasmo, do fracasso, do idealismo e da perda. A consulta de uma qualquer página das Actas das sessões parlamentares de então é por isso mesmo ocasião para uma comovente e deslumbrada experiência de a palavra poder cinzelar o mundo.

Um olhar mesmo que rápido sobre algumas cadeiras da actual Assembleia da República poderá tornar-se uma experiência melancólica e, na tenebrosa eventualidade de alguns dos que as ocupam abrirem a boca, penosa. Como é que chegámos aqui?  Que cruel pendente nos terá empurrado para este lodaçal onde imberbes adolescentes tentam embuçar a fartança de pontos negros e arrogância com frugais rudimentos de sintaxe e vergonha? Que misterioso processo lhes terá sustentado o, chamemos-lhe assim, ‘pensamento’ que os levou a, digamos, concluir que aquela tímida batalha de esguichos, travada ainda na semana passada com bisnagas nas marquises dos papás, constitui uma ideia de sociedade, economia, justiça ou de organização do Estado?

Na remota hipótese de os cachopos saberem quem foram, assustá-los-ia descobrir que, enquanto orientava a redação do Código Civil, Herculano lambia os arquivos nacionais e lançava as fundações de uma Biblioteca Nacional; Garrett imaginava o Teatro D. Maria II ao mesmo tempo que redigia O Alfageme de Santarém e O Arco de A Sant’Ana e Sophia, nos intervalos das suas traduções de Dante e Shakespeare, redigia o Preâmbulo da Constituição.

Especialistas em trato – o intestinal e o do servilismo – os franganitos perverteram a inefável ânsia da liberdade, reputando como baixeza imprópria do seu estalão aquilo que é no fundo a pedra angular da própria dignidade de um Estado livre – o serviço.

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Paradoxal e revolucionariamente, na origem desse conceito encontramos um antiquíssimo fenómeno meridional: para os antigos Gregos, era o conceito de cidadão que definia o Estado e não o contrário. Aristóteles afirmou vezes sem conta que a polis «não é comunidade de um lugar» nem simplesmente um meio de as pessoas se reunirem para o «exercício da justiça e da discussão». Por importantes que fossem, estas eram consequências, e não a razão da polis, muito menos a sua essência. É esse o motivo para, em documentos oficiais, a polis se identificar sempre, não com o nome da cidade, mas pelo nome colectivo dos seus cidadãos: “os Atenienses”, “os Espartanos”.

Quando no séc. VII aC os Gregos de novo se lançaram ao mar fundando comunidades por toda a bacia do Mediterrâneo (Mileto, o berço da racionalidade, de Tales e dos seus vedores, ficava na costa daquilo que é hoje a Turquia), mais do que a voragem da guerra, abriu-se dessa vez a aurora de uma inaudita experiência: a espantosa concretude do cosmos e, no seu seio, a sombra da responsabilidade e do espanto lançada sobre a presença do homem no tempo.

Quando um daqueles grupos se juntava para se organizar numa polis, não havia ninguém que lhes dissesse como fazê-lo. Tinham de descobri-lo sozinhos. Nesse momento, tudo se tornou negociável e discutível. E foi isto que os Gregos começaram a fazer por todo o mundo de língua grega: discutir, disputar, porfiar pelas melhores soluções que funcionariam para a comunidade enquanto um todo, e depois persuadir os seus concidadãos a adoptá-las. Desta combinação de argumentos racionais com a persuasão nasceria a primeira política – literalmente, «os assuntos da polis».

Alguns séculos depois, seria já possível que Platão pusesse Sócrates a dizer (Fédon, 109b) que «nós [os gregos] vivemos entre o Fásis e os pilares de Hércules… pelo que estabelecemos as nossas moradas em volta do mar como formigas e sapos à volta de um charco». O rio Fásis, agora chamado Rioni, corre pela Geórgia e desagua no Mar Negro perto do seu ponto mais oriental e os pilares de Hércules são o estreito de Gibraltar. Que belo charco!

Aristóteles, alguns anos mais tarde, diria aos seus estudantes em Atenas que a polis representava a melhor e mais natural forma para os homens se organizarem numa comunidade funcional: ela existe, em suma, para garantir aos seus cidadãos «uma vida perfeita e independente». A polis grega era o sinal evidente da comunhão de um ideal de que diante de nenhum poder – nem os deuses nem os persas – nenhum cidadão prescindia: a liberdade de um estado para criar as suas próprias leis.

Quais escaravelhos do esterco, os franganotes que nos couberam em sorte fogem de charcos, sobretudo se largos, preferindo terreno interior e seco – universidades de Verão, juventudes partidárias – onde as suas bolinhas de estrume podem mais facilmente ser roladas para as crestar ao sol.

O adjectivo derivado da eterna rival de Atenas – espartano – tornou-se nos tempos modernos sinónimo de radical frugalidade. Inimigos da democracia, fizeram do despojamento – ético, estético, político, gastronómico – um modo de vida. Tendo prescindido de ideias, de beleza, de ornamentos, do prazer, ninguém passeia hoje pelas suas ruínas porque, na verdade, não deixaram nada.