1. Os mais novos não devem reconhecer nem o nome nem o partido mas houve um tempo em que o Partido Socialista Italiano (PSI), liderado por Bettino Craxi, era uma peça central em Itália. Liderado por Craxi, o PSI chegou ao poder em agosto de 1983 e governou em coligação com a Democracia Cristã (de Guilio Andreoti) até abril de 1987 — um dos governos italianos mais estáveis desde a II Guerra Mundial. Craxi era um moderado que liderou o PSI durante 16 anos mas também era um corrupto.
Foi condenado em vários processos a um total de 27 anos de prisão efetiva, sendo que o primeiro caso teve uma pena de 8,5 anos de prisão efetiva decretada em julho de 1994 por ter recebido numa conta bancária na Suíça um suborno de 7 milhões de dólares do Banco Ambrosiano. Condenado, o socialista disparou contra o financiamento ilegal de todo o sistema partidário italiano (que seria denunciado pela Operação Mãos Limpas) mas, perante a eminente apreensão do seu passaporte, fugiu para a Tunísia, onde tinha uma esplendorosa mansão na cidade costeira de Hammamet. Ali morreu em janeiro de 2000.
Quando foi condenado pela primeira vez em 1994, Bettino Craxi acusou os procuradores e os tribunais italianos de de “terem violado todos os direitos de defesa”. “Não protesto contra a injustiça da sentença porque justiça nada a ver com isso”, disse.
Se recordarmos os grandes casos de corrupção que assolaram políticos como Silvio Berlusconi (que chegou a ser condenado por pagar 11 milhões de dólares a diversas sociedades offshore de Bettino Craxi — um homem essencial para a construção do seu império de media), Nicolas Sarkozy, Jacques Chirac ou os muitos e diversificados casos que inundaram a Justiça de Espanha, como o caso Barcenas, veremos que todos se queixam do mesmo: se Berlusconi se queixava de ser perseguido pelos “juízes vermelhos de Milão”, já Craxi dizia-se vítima de uma “injustiça”, tal como Sarkozy ou Chirac e todos os políticos espanhóis condenados queixam-se de que a Justiça os persegue por razões políticas.
Palavras que o caro não leitor não estranhará no Portugal de 2018 se ouvir com atenção José Sócrates e o seu amigo Armando Vara a dissertarem sobre as teorias conspirativas mais mirabolantes que envolvem os procuradores e os juízes que os investigaram (e, no caso de Vara, condenaram) ou a atacar a comunicação social que escrutina legitimamente as suas atividades.
2. Vem isto a propósito da tentativa de acordo que o PSD e o PS explicitaram no dia 5 de dezembro no Parlamento para alterarem a composição do Conselho Superior do Ministério Público, no âmbito da alteração do Estatuto do Ministério Público (MP). O objetivo parece-me claro: o controlo do MP.
Certamente inspirado pelo grande exemplo que Silvio Berlusconi representa para qualquer democrata, Rui Rio decidiu imitar uma tentativa pornográfica de reforma judicial que Berlusconi começou a desenhar quando estava acossado por diversos processos judiciais. Um dos pontos dessa pretensa reforma (que nunca foi concretizada) passava por retirar poderes ao Conselho Superior da Magistratura (que, em Itália, serve as duas magistraturas). Dizia Berslusconi que “numa verdadeira democracia, a justiça não pode estar submetida ao poder de uma categoria [os juízes e os procuradores] que não têm legitimidade eleitoral”.
Rio não pensa de forma muito diferente, já que no documento da sua reforma da Justiça também quer colocar o poder político a mandar nos órgãos de gestão e disciplinares das magistraturas através de uma “maioria efetiva de cidadãos”, transformando uma maioria de procuradores no Conselho Superior do Ministério Público numa maioria de designados pelo poder político e reforçando essa maioria que já existe no Conselho Superior da Magistratura. É certo que as razões de Rio não são venais como as de Berlusconi mas o populismo, esse, é igual. Em nome de um suposto reforço da legitimidade democrática dos órgãos de gestão das magistraturas, Rio quer (como Berlusconi queria) matar dois coelhos com uma só cajadada: colocar em causa o auto-governo das magistraturas e o princípio da separação de poderes entre o Executivo e o Judiciário. Dois conceitos sem os quais nenhuma democracia é digna desse nome.
Com o sempre disponível-para-qualquer-serviço Jorge Lacão bem demonstrou a 5 de dezembro no Parlamento, há um sector do PS que gosta destas ideias de Rui Rio. Não esquecem o caso Casa Pia, como não esquecem obviamente o Face Oculta (Armando Vara) ou a Operação Marquês (José Sócrates e outra vez Vara).
É certo que a ameaça de greve fundamentada do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e a reação rápida do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, obrigaram os socialistas a recuarem. Mas, até hoje, ainda não ouvimos uma palavra de António Costa sobre a matéria. Só uma vaga garantia da ministra Francisca Van Dunem que, depois de ser quase desautorizada por um deputado como Lacão, fez questão de recordar que Costa também é secretário-geral do PS. Ou seja, manda na bancada parlamentar. Veremos se assim será na especialidade na conclusão da análise da proposta do Governo sobre o novo Estatuto do MP.
3. O mais extraordinário, contudo, é o facto da reforma de Rio, o paladino da seriedade, servir ‘como uma luva’ os interesses de José Sócrates, de Armando Vara e de uma parte do Partido Socialista que, juntamente com alguns companheiros e apoiantes de Rio, gostam de misturar a política com os negócios e colocar os interesses privados da advocacia acima do interesse público.
É que Silvio Berlusconi tinha razões pessoais para defender uma reforma judiciária como a que propôs: controlar a Justiça em causa própria, tal era o número de processos que corriam em tribunal contra o líder da Forza Itália.
O objetivo de Rui Rio não é esse — até porque não é visado em nenhum processo. Mas Rio acaba por ser uma espécie de idiota útil para todos aqueles que querem continuar a fazer a sua vidinha de enriquecer ilicitamente à custa do interesse público, sem que o Ministério Público e os tribunais os incomodem. É esse o resultado prático das suas propostas.
Na realidade, os sectores do PSD e do PS que querem servir-se de Rui Rio para controlarem politicamente o Ministério Público e os tribunais com o mesmo objetivo que Mário Soares fez questão de pronunciar em 1995 quando, no meio de uma visita de Estado à Tunísia enquanto Presidente da República, fez questão de receber o foragido Bettino Craxi na embaixada de Portugal: “Não deixo cair os amigos”.
Corrigido o local em que Mário Soares recebeu Bettino Craxi na Tunísia. O encontro ocorreu na Embaixada de Portugal em Tunes — e não na mansão de Craxi em Hammamet
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