1 Lembra-se do TGV? O ministro Pedro Nuno Santos informou há dias que o concurso para a linha Lisboa/Porto deve avançar em 2023 e com os primeiros troços a ficarem concluídos até 2028. A linha Porto/Vigo não tem calendário anunciado, mas é inviável sequer imaginar que esteja operacional antes de 2030. O projecto do TGV começou durante o segundo governo de António Guterres (1999-2002) e, em 2003, no governo Durão Barroso, Portugal e Espanha acordaram a criação de quatro linhas — Lisboa/Madrid, Porto/Vigo, Lisboa/Porto, Porto/Salamanca (via Aveiro). Entre trapalhadas e indecisões, em 2010, o governo de Sócrates assinou o contrato para o primeiro troço da linha Lisboa/Madrid, mas este viria a ser anulado pelo Tribunal de Contas, em 2012, que recusou o visto. Nesse período, outros concursos foram anulados e o projecto caiu por terra já sob o governo Passos Coelho, em plena crise financeira.
Feitas as contas, para além do tempo desperdiçado em discussões, reuniões e projectos, o TGV custou pelo menos 150 milhões de euros sem sequer sair do papel — isto sem contabilizar as indemnizações de centenas de milhões que as empresas reclamaram. Pelo meio, houve corrupção ao mais alto nível: José Sócrates foi acusado na Operação Marquês de favorecer o Grupo Lena num concurso de TGV, facultando dados confidenciais à empresa e recebendo quase 6 milhões de euros em troca. Tudo somado, entre embrulhadas políticas e erros de gestão, serão 30 anos de avanços e recuos para cumprir apenas parte do projecto inicial do TGV — e muito dinheiro desperdiçado em estudos e em indecisões.
2 Lembra-se do novo aeroporto de Lisboa? O mesmo ministro Pedro Nuno Santos informou que espera ter em 2023 a Avaliação Ambiental Estratégica para o novo aeroporto de Lisboa. Após anos, a discutir cenários e localizações para o novo aeroporto, estão três hipóteses na mesa: Portela (principal) + Montijo (complementar); Montijo (principal) + Portela (complementar); Alcochete. A opção Portela+1 já chegou a ser tratada como definitiva, mas deixou de o ser. Em 2016, o governo tinha um acordo para um novo aeroporto no Montijo, com inauguração prevista para 2024 — mas, entretanto, caiu por terra. Em 2019, o governo tinha um acordo para a expansão do aeroporto da Portela — mas ficou tudo suspenso. Perante a situação actual, é improvável que haja uma nova infraestrutura aeroportuária antes de 2035 ou 2040. E quando é que isto começou? O assunto é mais velho do que a democracia portuguesa: desde 1969 que se discute uma nova localização para o aeroporto de Lisboa e se avaliam opções. A questão atravessou todos os governos, sem que se tenha atingido um consenso, mais de 50 anos depois.
3 Lembra-se da regionalização? No início de 2022, o Presidente da República elegeu a regionalização como tema a discutir com “premência”, pois é um “tema central” nas sociedades europeias há várias décadas. Em Portugal, realmente acumulam-se décadas de discussão, que começou no Estado Novo e se prolongou na transição para a democracia. Discussão que culminou num referendo popular, em 1998, que rejeitou a regionalização — mas que não demoveu os seus principais promotores. Em 2016, Rui Rio defendeu explicitamente a regionalização como forma de dar um novo impulso a Portugal. Em 2019, o primeiro-ministro assumiu a ambição, afirmando que o PS sempre foi a favor da regionalização. Entretanto, uma Comissão “Independente” para a Descentralização, liderada pelo socialista João Cravinho (fervoroso defensor da regionalização), entregou um relatório a propor um modelo de regionalização — e de acordo com declarações do mesmo João Cravinho em 2020, sem regionalização Portugal tornar-se-á uma província de Espanha. Entretanto, implementa-se agora uma descentralização, que muitos projectam como a antecâmara para a regionalização, enquanto lamentam o requisito constitucional de convocar um referendo (que ainda não sabem como contornar). Com 50 anos de debates e 25 anos passados desde o referendo, o único consenso é continuar… a debater.
4 Lembra-se da redução das propinas do ensino superior? Há uma semana, o PS propôs o congelamento das propinas até 2023/2024. Por coincidência, no mesmo dia saiu um artigo de opinião de Miguel Herdade sobre as propinas, que sublinhava aquilo que as evidências dizem há anos: as propinas baixas são uma forma de os mais pobres subsidiarem (por via de impostos) a educação dos mais ricos. Todos os anos, o tema das propinas no ensino superior reaparece no debate — seja por via do activismo estudantil ou pelas discussões do financiamento das instituições de ensino superior. Aliás, desde a sua introdução na década de 1990, as propinas têm sido o alvo preferido dos movimentos estudantis, com destaque para a manifestação de 24 de Novembro de 1994, marcada pela intervenção da polícia e acusações de violência. Após trinta anos de debates e lutas académicas, os governos de António Costa baixaram os valores das propinas até ao montante de 697 euros (em 2015, o valor máximo era 1063 euros) e o PS fez disso uma bandeira política. É realmente extraordinário: apesar de todos estes anos terem passado, com longos debates e exposições de argumentos, o país continua alheio às evidências e entregue à reivindicação ideológica, incapaz de perceber que a luta anti-propinas serve, na verdade, os interesses de quem pode pagar as propinas — e que não resolve os problemas de acesso ao ensino superior de quem provém de contextos sociais desfavorecidos.
5 Estes acima são exemplos muito recentes de discussões com que, na monotonia dos seus avanços e recuos, Portugal se ocupa há décadas, sem qualquer proveito. Poderia ir resgatar outros também da ordem do dia, como a falta de professores (que é há anos evidente mas que o país parece ter descoberto ontem), a natalidade (desafio em relação ao qual se convocam tertúlias e pouco mais) ou como a reforma do sistema eleitoral (discutido há décadas e agora novamente nas prioridades políticas). Ou, ainda, poderia ilustrar com exemplos de como o país consegue ser surpreendido pela mesma informação vezes sem conta: veja-se como, na semana passada, o país ficou em choque com a informação de que a escolaridade dos pais é um previsor do sucesso escolar dos filhos e reiniciou um debate sobre a situação — quando esse é um facto consolidado pela investigação há dezenas de anos.
6 Há uma canção dos Queen, “I want to break free” (1984), na qual Freddie Mercury canta com ironia que se tinha acabado de apaixonar pela primeira vez e que, desta vez, sabia que era mesmo a sério. Portugal funciona mais ou menos da mesma forma, mas sem o entusiasmo juvenil: está sempre a descobrir os mesmos problemas, a iniciar os mesmos debates, a chegar às mesmas conclusões e a bloquear nas mesmas inconsequências. E, a cada recomeço, acredita mesmo que desta vez é que vai ser. Mas nunca é. Até ao dia em que, inevitavelmente, e como na canção, Portugal terá de se libertar de quem o está a amarrar.