1. Sonhar pelos filhos é um acto de amor. Passar para eles a responsabilidade dos nossos sonhos já não tem graça nenhuma. Mas todos fazemos as duas coisas. Na melhor das hipóteses, sem darmos por isso. No mínimo, pondo “em cima” dos nossos filhos alguns dos nossos sonhos que gostávamos que se tornem seus.

2. A relação dos nossos filhos com os nossos sonhos vai-se alimentado, mutuamente. Evidentemente que os pais não precisam andar a repetir, um a um, todos os seus sonhos, pela vida fora, para que os filhos os reconheçam e identifiquem. Às vezes, (é verdade!) pespegamo-los bem debaixo dos seus olhos. De uma forma ou de outra, os sonhos dos pais são sempre um “gato escondido com o rabo de fora”. Os filhos identificam-nos à distância. E, muitas vezes, tomam-nos como seus. Unicamente porque, à escala daquilo que um filho sente, assumir os sonhos de um dos pais é, na maioria das vezes, uma declaração de amor. Às vezes, pode tornar-se, também, uma forma de abraçar o orgulho por tudo aquilo que esse pai, aos seus olhos, representa (fazendo de um sonho um “testemunho”). Mas pode ser, nalgumas circunstâncias, a contrapartida “tristonha” de, ao aceitar esse sonho, “conquistar” a atenção e o amor de um dos pais, que pareciam existir; mas de forma “constipada”. Ou pode ser um modo de “ocupar” o seu lugar quando se não consegue o seu amor.

3. Por tudo isto, e à medida que crescemos como filhos, nunca saímos, completamente, do sonho dos nossos pais. Às vezes, é bom. Porque isso nos leva a sentir, como pais, que um filho, que começou por ser um sonho, contém e guarda – mas expande! – os nossos sonhos. Às vezes, é mau. Se a felicidade dos nossos pais, ou o sem bem-estar, depende da concretização que façamos dos seus sonhos. Como se, nessas alturas, não ficasse completamente claro se eles nos amam por aquilo que somos ou, antes, pelas contrapartidas que lhes trazemos à concretização dos seus sonhos. Por outras palavras, uma coisa é viver os sonhos dos pais (ou dar vida aos seus sonhos, por eles). Outra é viver nos sonhos dos pais (sem “poder” sair deles).

4. É claro que, “idealmente”, os nossos filhos, à medida que crescem, misturam os sonhos do pai e os sonhos da mãe, e todas as influências que lhes colocámos ao dispor. E ligam isso tudo aos sonhos que construímos com eles. Tudo duma forma inconsciente, claro. Mas inequívoca, também. Os sonhos dos nossos filhos têm sempre um bocadinho da nossa impressão digital. Mas aos seus sonhos eles não chegam comodamente. Precisam de “mergulhar” em si próprios. Para que os decifrem e os desvendem. E para que, então, lutem por eles. E em tudo isso não é pecado se os pais os ajudarem a discernir o trigo e o joio dos seus sonhos. Isto é, até que ponto estarão eles a lutar por reconhecer os seus sonhos ou, pelo contrário, não se estarão a adaptar, “comodamente”, a uma história, querida para os pais, mas que não é “a sua”.

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5. Ao “topo de gama” da natureza humana chega-se quando duas pessoas diferentes constroem um sonho que até aí não existia para nenhuma delas. Construir um sonho a dois, ao mesmo tempo que ele se sonha estando nós acordados, é uma experiência de êxtase. Da qual, tristemente, muitas pessoas se desencontraram cedo demais.

6. O que se passa é que, demasiadas vezes, os pais parecem não conseguir ter os pés na terra e a cabeça na lua. E, portanto, lidam com os sonhos — com os seus e com os dos filhos — como se eles pagassem imposto de luxo. E isso não ajuda um filho a sonhar. Doutras vezes, sonham tanto para os filhos que, bem vistas as coisas, eles parecem não achar indispensável sonhar por si mesmos.

7. O grande problema está quando querermos muito que um filho concretize os sonhos que nunca alcançámos. E o “obrigamos” a assumi-los. E quando ele resiste, os seus próprios sonhos são vividos por nós como uma espécie de “traição” ou de ingratidão. Como se os sonhos dele não servissem. Não tanto porque não prestem, claro. Mas porque, ao lado de tudo o que fomos idealizando, aos sonhos dos nossos filhos pareça faltar sentido, consistência ou pujança. Porque os sonhos dos pais são tão perfeitos que, quanto mais um filho os assume como seus, o melhor que consegue é ficar… aquém.

8. Chegados ao fim, a questão que se coloca será: algum dia os nossos filhos terão de sair dos nossos sonhos pelo seu pé? De preferência, não. Viverem com “um pé dentro e um pé fora” nos nossos sonhos é precioso. Com “um pé dentro”, porque isso significa que eles não deixam de ser um motivo de encantamento para nós. E significa, ainda, que, independentemente de o seu percurso de vida ser “o seu”, nunca nos deixamos de reconhecer neles. Com “um pé fora”, porque nós precisamos tanto que eles tragam contraditório aos nossos sonhos como eles precisam de nós para o trazermos aos deles. E porque construirmos sonhos a dois, partindo de sonhos diferentes, faz do exercício de sonhar uma auto-estrada para o amor. Já quando os nossos filhos se desencontram muito dos nossos sonhos parecem não existir pontes entre aquilo que sonhámos para eles e aquilo que eles são. E isso torna-se “trágico”. Porque talvez seja uma forma de eles “deixarem de ser” nossos filhos. Por mais que continuem a sê-lo.

9. Concluindo: sonhar para os filhos acrescenta liberdade ao nosso amor por eles. Fechá-los nos nossos sonhos impede-os de crescer. E de sonhar!