A Lei de Bases da Saúde (LBS) é um conjunto de disposições legais que estabelecem o quadro geral da política de saúde em Portugal, fixando os princípios gerais que estruturam o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a relação entre o Estado e os cidadãos em matéria de cuidados de saúde. Foi criada com o objetivo de assegurar o acesso de todos os cidadãos portugueses a cuidados de saúde de qualidade, bem como garantir a sustentabilidade e a eficiência do sistema de saúde português, pelo que também estabelece as responsabilidades e competências das diferentes entidades e instituições que o integram: serviços de saúde, profissionais de saúde e autoridades de saúde. A “nova” Lei de Bases da Saúde foi publicada em Diário da República em setembro de 2019, revogando a Lei de Bases datada de 1990 e revista em 2002.

Uma das bandeiras ideológicas da “nova” Lei de Bases da Saúde diz respeito à relação entre o SNS e o setor privado. Na sua Base 6 destaca-se que “a responsabilidade do Estado pela realização do direito à proteção da saúde efetiva-se primeiramente através do SNS e de outros serviços públicos, podendo, de forma supletiva e temporária, ser celebrados acordos com entidades privadas e do setor social”. Assim, cai por terra uma das ideias-chave da revisão de 2002 da Lei de Bases de 1990, em que uma das prioridades da tutela era o “aprofundamento das experiências inovadoras de gestão de natureza empresarial e da mobilização do investimento não público no sistema de saúde, fazendo participar crescentemente os setores privado e social nos diferentes modelos e formas contratuais, com vista a obter uma progressiva racionalização das funções de financiamento e contratação e da função prestação de cuidados de saúde”. Parte das motivações para quebrar a relação simbiótica progressiva que existia entre o SNS e o setor privado incluiu a alegação de que o forte crescimento do setor privado da saúde se repercutiu de forma negativa no SNS, “sobretudo ao nível da competição por profissionais de saúde e da desnatação da procura”.

Os resultados dos 43 anos de SNS são inequivocamente positivos. Contudo, é fácil compreender hoje, em 2022, que o atual modelo não consegue responder às necessidades em saúde do presente e do futuro. Porquê? São diversas as falhas identificadas há vários anos, que seguramente teriam sido já resolvidas se a solução fosse fácil ou existente: financiamento insuficiente para atender às necessidades da população e para investir em novas tecnologias e equipamentos, falta de profissionais de saúde em algumas áreas do país, desigualdades de acesso aos cuidados de saúde (especialmente nas regiões do interior e entre os grupos mais vulneráveis da sociedade), a ineficiência do sistema de saúde e o envelhecimento da população. Mas negar os contributos positivos de algumas das políticas de saúde recentes, tais como as parcerias público-privadas, é desnecessário e não ajuda a melhorar a Saúde em Portugal.

As PPP em saúde são acordos entre o setor público e o setor privado para a prestação de serviços de saúde, com o objetivo de aproveitar os recursos e a experiência do setor privado para melhorar a eficiência e a qualidade, enquanto garantem ainda o acesso universal e a proteção dos direitos dos utentes. As PPP em saúde podem surgir em diversos formatos, tais como a construção e gestão de hospitais públicos pelo setor privado, a prestação de serviços de saúde por empresas privadas em unidades públicas, ou a prestação de serviços de saúde em unidades privadas para o setor público. A sua implementação é polémica, com a discussão sobre a sua utilidade a esbarrar muitas vezes em preconceitos ideológicos relacionados com doutrinas políticas.

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Mais do que preconceitos ideológicos interessam factos. Uma análise pelo Tribunal de Contas a alguns dos casos-exemplo de PPP na saúde da última década (Hospitais de Braga, Vila Franca de Xira, Loures e Cascais) sublinhou que este modelo de gestão gerou poupança ao Estado, foi genericamente mais eficiente do que a média dos hospitais de gestão pública comparáveis, enfatizando uma avaliação positiva do desempenho das PPP na componente de gestão hospitalar, quer na ótica do Estado quer na ótica das avaliações externas independentes que foram por ele promovidas. Como se pode explicar, então, o fim das PPP na Saúde? Se as PPP na Saúde estão associadas a resultados muitos positivos em termos de qualidade do serviço, satisfação dos utentes e custo, qual o motivo para a LBS de 2019 promover um afastamento cada vez maior deste modelo de gestão em saúde?

A “nova” LBS, na sua Base 20, propõe um conjunto de princípios que devem estruturar a prestação de cuidados de saúde no SNS: universal (ou seja, o garante de prestação de cuidados a todas as pessoas, sem discriminações, em condições de dignidade e igualdade), geral (na sua abrangência, promovendo a saúde, prevenindo a doença e tratando e reabilitando os doentes) e tendencialmente gratuito (tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos). Adicionalmente, reforça-se ainda a importância da integração de cuidados, equidade, qualidade, proximidade, sustentabilidade financeira e transparência. Contudo, sabemos que isto não acontece. Reflitamos sobre os três exemplos que descreverei de seguida.

Mais de 1,4 milhões de portugueses não tem médico de família (situação particularmente gravosa na área de Lisboa e Vale do Tejo), o que se repercute em enormes dificuldades no acesso aos cuidados de promoção da saúde e prevenção da doença, tipicamente prestadas no âmbito dos cuidados de saúde primários, fora do contexto hospitalar. A consequência óbvia é a necessidade de forçar uma porta de entrada no sistema de saúde que muitas vezes passa pelo recurso ao serviço de urgência, o que sobrecarrega estes serviços com um elevado número de episódios que não deveriam ser resolvidos em contexto de urgência (com acréscimo de gastos para o sistema e desperdício de capacidade de trabalho de recursos humanos).

Cerca de um terço dos portugueses não recorrem a consulta de Medicina Dentária ou fazem-no apenas em situação de urgência e em 30% destas pessoas a principal razão que as afasta de uma adequada saúde oral são motivos financeiros. A saúde oral em Portugal tem um percurso atribulado, que começa em não ter sido integrada na criação do SNS (que se pretendia de abrangência “geral”) e pelo fracasso do Programa de Saúde Oral para Todos, um projeto criado em 2017 que pretendia integrar médicos dentistas nos agrupamentos de centros de saúde, com múltiplos fatores que propiciaram este insucesso e que incluíram a incapacidade de criar carreiras e condições atrativas para reter médicos dentistas.

Apesar dos reforços orçamentais da Saúde, as famílias continuam a ser responsáveis pelo pagamento de 27% das despesas de saúde. Com base em dados de 2020, quando pensamos na despesa corrente em saúde, o SNS e os Serviços Regionais de Saúde dos Açores e da Madeira contribuíram com 56% para o seu financiamento. Ou seja, perante as falhas já identificadas na acessibilidade e universalidade dos cuidados de saúde prestados pelo SNS, os 27% de pagamentos diretos pelas despesas em saúde pedidos às Famílias parecem desproporcionados e não correspondentes aos objetivos a que o SNS se propõe.

Na Base 23 da LBS apresenta-se o modelo de financiamento do SNS, que deverá ser “assegurado por verbas do Orçamento do Estado”, o qual deverá permitir que “o SNS seja dotado dos recursos necessários ao cumprimento das suas funções e objetivos”. Ou seja, como fica evidente, o SNS português é financiado por impostos. O SNS coexiste com outros dois sistemas: os subsistemas de saúde (que proporcionam cobertura a determinadas profissões ou setores, como é o caso do regime dos funcionários públicos e dos funcionários do setor bancário) e os regimes privados de seguro voluntário de saúde. Interessa destacar que quer os subsistemas de saúde (como por exemplo a ADSE) quer os seguros voluntários de saúde facilitam o acesso a tratamentos hospitalares e a consultas de ambulatório na vasta rede nacional de instituições privadas de saúde. Não será por isso de estranhar que, perante o problema de acesso aos cuidados de saúde prestados pelo SNS, mais de cinco milhões de portugueses tenham seguro privado ou um subsistema de saúde, sublinhando que os hospitais privados são a porta de acesso aos cuidados de saúde para cada vez mais portugueses.

O que urge mudar? Como poderá uma alteração da atual LBS promover a mudança necessária na saúde em Portugal? Como ter cuidados de saúde que cheguem a mais pessoas, que promovam adequadamente a saúde e que tratem atempadamente a doença, de forma conveniente e eficiente? As pessoas terão quer ser o centro da organização do sector da saúde, com uma aposta forte na promoção da literacia em saúde e com a promoção da liberdade de escolha dos prestadores de cuidados de saúde. Deverá ser assegurada a existência de um SNS que se articule adequadamente com os setores social e privado para garantir o acesso aos serviços de saúde a todos os que deles necessitem. Para isso, cada pessoa deverá ter a liberdade e responsabilidade de escolher um subsistema de saúde, que organiza a sua rede regional de prestadores de cuidados de forma transparente e objetiva e com a salvaguarda de assegurar cuidados de saúde abrangentes e de acordo com as melhores práticas existentes. Já no que diz respeito ao financiamento, as contribuições fiscais para a Saúde não podem ficar diluídas na receita fiscal total e seria desejável transformar a Saúde num subsetor independente do Estado, à semelhança da Segurança Social. Cada contribuinte descontaria uma percentagem do seu salário para o subsistema de saúde em que estava inscrito, assegurando o Estado a contribuição de quem não a puder pagar.

É da responsabilidade de todos nós perceber a necessidade de mudança da organização e financiamento do Serviço Nacional de Saúde. Este é o caminho decisivo que temos de trilhar para assegurar a Saúde das próximas gerações.