Tenho um amigo que passa os verões em périplo pelas praias do interior do país a fotografar a excentricidade dos nossos compatriotas em férias. São sempre imagens peculiares. Há a matrona semi-obesa, de guardanapo na cabeça, sentada em ângulo recto, a gritar para o neto não se molhar pois ainda não fez a digestão. Há o neto robusto em cuecas, de rissol na mão e outro na boca, muito parado a fazer xixi na água e a achar que ninguém nota. Há o emigrante, escarlate do vinho e do escaldão, a gritar “regarde moi, Tozé!” antes de mergulhar de chapão da fraga mais alta para o sítio onde a água é mais rasa. Há o hippie que veio do Boom e acha que tudo aquilo ainda é delírio psicadélico. Há o turista urbano de Lisboa, reconhecido por mariquinhamente usar sapatos de borracha e por reclamar da falta de variedade de brancos na carta do snack bar de apoio à praia. A variedade é imensa.

Mas este ano, por mais extravagância fluvial que o meu amigo fotografe, nada baterá, em bizarria registada em rios portugueses, a figura protagonizada pela Transtejo. A empresa pública de cacilheiros, depois do fiasco de ter comprado barcos eléctricos sem baterias, agora não consegue instalar as estações de carregamento nos cais do Tejo. A explicação: «O calendário do concurso atribuído em 2022 ao consórcio liderado pela CME por 14,4 milhões de euros previa que os sistemas de carregamento começassem a ficar operacionais a partir do final de maio no Seixal, no final de junho no Cais do Sodré, em final de setembro no Montijo e até 31 de outubro em Cacilhas.

Mas até agora nenhum foi executado porque não foi possível obter todas as licenças necessárias junto de várias autoridades para ligar à rede elétrica de média tensão e para certificar os pontões junto das autarquias e da Direção-Geral de Recursos Marinhos. (…)

A circunstância da “validação, certificação e licenciamento do projeto depender de um elevado número de entidades externas (E-Redes, DGEG, APL, Câmaras Municipais e DGRM) e devido à “grande complexidade do projeto, designadamente, o seu caráter inteiramente inovador”. Este argumento já foi usado no passado, pela anterior gestão da empresa, para explicar os percalços nesta renovação de frota. Fontes do setor apontam a falta de estudos a fundamentar as decisões tomadas pela empresa.»

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Portanto, uma empresa do Estado não consegue garantir que outros organismos do Estado lhes passam as licenças que precisa para instalar uma tomada eléctrica. Quando funcionários públicos não se coordenam entre si, que esperança para o resto do país? Porque é que a Transtejo não contrata um dos chico-espertos daquelas negociatas do Ministério da Defesa? São peritos em contornar regras. Compram um daqueles carregadores universais numa loja chinesa e licenciam-nos como estações de carregamentos legítimas. E só têm de pagar uma pequena comissão. Mas a Transtejo já está habituada a lidar com comissões chatas. Basta ver as notícias dos plenários das comissões de trabalhadores.

Se bem que, neste caso, a razão do atraso é a “grande complexidade do projecto, designadamente, o seu carácter inteiramente inovador”, que é um eufemismo de relatório e contas para “puseram-se a inventar com tecnologia nova”. É como se os primeiros homens tivessem construído depósitos para guardar lenha antes de descobrirem o fogo. O Governo português quis que fôssemos os primeiros a ter barcos eléctricos por causa do clima, mas a papelada que vão gastar para se obterem todas as licenças mata muito mais árvores que o aquecimento global. No fim, não salvam o planeta e ainda ficaram a não ver navios.

O Conselho de Administração da Transtejo é uma espécie de anti-Velho do Restelo: é a favor do progresso, mas apesar disso os barcos não saem do cais.

Nem se percebe porque é que a Transtejo está a perder tempo com burocracia, quando na prática o que precisa é de um electricista amigo que lhe faça uma puxada. Mais prático que um ajuste directo, só uma ligação directa. O meu primo safou-se com um tipo que lhe apareceu em casa com um busca-pólos e um alicate corta cabos. Em 10 minutos ligou-o à rede, electrificou-lhe uma garrafa de Mateus Rosé para ficar um candeeiro e ainda lhe instalou uma box desbloqueada com acesso a 1300 canais. Só lhe custou 70 euros e duas minis. A Transtejo que me peça o contacto e antes do fim de Agosto tem as estações montadas e os barcos todos com SportTV.

Entretanto, sem condições para serem recebidos em Lisboa, os navios continuam nas Astúrias, no estaleiro do construtor. A última vez que uma operação principiou nas Astúrias, ainda demorou alguns séculos a chegar a Lisboa. Por este andar, é possível que o tempo de espera pelos barcos bata o recorde da Reconquista.

Se os barcos ainda não estão terminados, se calhar dá para pedir para se fazerem uns buracos a meio do casco, para colocar remos. Em vez de estarem à espera que as estações de carregamento fiquem prontas, gastam meros 500 mil euros em pagaias e pede-se aos passageiros para remarem. Até vão gostar. Despacham a ida ao ginásio na viagem para o trabalho e acabam por poupar tempo e dinheiro.

Esta chachada dos barcos eléctricos da Transtejo dura há tanto tempo que já se tornou num ex-libris de Lisboa. A cidade era conhecida pela sua luz, agora também é pela falta de luz. Aposto que em breve terá a sua própria lengalenga infantil. “Que linda falua que nunca mais vem / É uma falua parada em Belém / Vou pedir ao senhor barqueiro que me deixe passar / Ah, não tem bateria? Não faz mal, vou a nadar”. A pequenada vai delirar.