Desde pelo menos 8 de junho de 1949 que já se sabe: quem controla as palavras, controla a política; quem controla os factos, controla o poder. Como explicou um escritor famoso, tudo está perdido quando um regime consegue impor a equivalência entre conceitos opostos, levando à arbitrariedade e à impotência: “Guerra é paz. Liberdade é escravatura. Ignorância é força”.

Atenção: não quero exagerar. Estamos em 2023, não estamos em 1984. Vivemos numa democracia, não vivemos num sistema totalitário — e só os conspiracionistas são incapazes de ver as diferenças entre uma coisa e a outra. Mas, mesmo não confundindo o que deve ser tratado de forma diversa, é necessário reconhecer que há hoje sinais que são inquietantes. Aliás, mais do que inquietantes, são muito inquietantes — porque, como acontece no caso do computador do ex-adjunto de João Galamba, envolvem o poder político, os serviços secretos e um mistério envolto num sigilo dentro de um nevoeiro.

A 1 de maio, António Costa declarou que o seu ministro alertou — “e bem” — o SIS para aquilo que classificou como o “roubo” de um computador com “documentos classificados”. A 4 de maio, o Conselho de Fiscalização das secretas anunciou que, após uma aturadíssima investigação, chegou à conclusão de que os elementos recolhidos “não permitem concluir” que tenha havido uma atuação ilegal do SIS. A 9 de maio, o Conselho de Fiscalização foi ao Parlamento explicar que essa atuação não era ilegal pela simples razão de que, no entendimento dos serviços secretos, não tinha havido qualquer roubo e, portanto, não estávamos perante uma matéria de investigação criminal, que seria da competência exclusiva das polícias. A 11 de maio, Mário Belo Morgado, que faz parte do Conselho de Fiscalização, reafirmou ao Público essa convicção, mas com o seguinte alerta, que nos deve deixar desconfiados: apesar de entender que não existiu roubo, só “aos tribunais cabe dizer se em certo caso há ou não um crime”.

Parece ser evidente aquilo que se está a passar. No início, interessou ao governo que tivesse existido um roubo do computador, para justificar a atuação de um ministro — então, decretou-se a existência do roubo. Depois, interessou ao governo que não tivesse existido um roubo, para ilibar a atuação do SIS — então, decretou-se a inexistência do roubo. Daqui a uns tempos, voltará a interessar ao governo que tenha existido um roubo, para desacreditar em tribunal a atuação do ex-assessor — então, decretar-se-á novamente a existência do roubo. É a velha história: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”.

Este é um caso de manipulação dos factos. Mas também há episódios de manipulação das palavras. Quando se descobriu que a ex-CEO da TAP tinha estado numa reunião do PS e do governo que serviu para preparar uma audição parlamentar, João Galamba emitiu um comunicado onde dizia duas coisas que colocavam uma cerca sanitária entre o ministro e a polémica. Primeiro, empurrou a iniciativa para cima de Christine Ourmières-Widener: “O ministro das Infraestruturas foi informado de que a TAP, na tarde do dia 16 de janeiro, tinha transmitido o seu interesse em participar na reunião com o grupo parlamentar do PS”. Depois, atirou a responsabilidade pela marcação do encontro para cima da sua colega Ana Catarina Mendes: “O ministro das Infraestruturas não se opôs à participação da TAP na reunião, agendada pela área governativa dos Assuntos Parlamentares”. Quando, alguns dias depois, João Galamba precisou de se defender no caso do ex-assessor percebeu-se que havia aqui um truque: afinal, tinha sido o próprio ministro das Infraestruturas a sugerir à ex-CEO da TAP que participasse na reunião. Ou seja: Christine Ourmières-Widener “transmitiu o seu interesse em participar na reunião”, mas apenas depois de João Galamba lhe ter transmitido o seu interesse em que ela transmitisse o seu interesse. De qualquer forma, mesmo perante a evidência de uma manipulação, o ministro manteve convictamente a sua versão dos acontecimentos. A realidade pode ser truncada, torcida e torturada até se encaixar na narrativa que melhor defende o governo.

A mensagem enviada pelo regime nestes dois episódios é simples e brutal: quem não pertence ao partido certo, quem não tem os amigos certos e quem não conhece as pessoas certas fica absolutamente, completamente, irremediavelmente sozinho. As palavras não interessam. Os factos não interessam. Quem tem poder, protege-se; quem não tem poder, não tem defesa.

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