1 Cagaço, cagufa e miúfa. Três nomes em bom calão português que identificam bem o estado de espírito de alguns dos protagonistas de uma crise política que acabará em inevitáveis eleições antecipadas. Uns provocaram a atual crise política (PCP e Bloco) mas têm um medo inexplicável de ouvir a voz do povo. Outros (PSD e CDS) têm líderes que, em diversos atos desesperados (mais próprios de náufragos), estão a tentar adiar eleições internas com medo de perderem o poleiro quando o centro-direita tem uma oportunidade real de disputar as legislativas.
Pelo meio, temos um Governo que está na posse de todos os seus poderes — o que deixa antever mais uma ronda de pornográficas decisões eleitoralistas até ao dia das eleições. E um Presidente da República que acabou por precipitar as eleições com uma ação que julgava ser apenas preventiva.
O mais extraordinário desta crise política que aparentemente só era desejada por António Costa, é que há um ministro chamado Pedro Nuno Santos que, à custa do seu trabalho de formiguinha de controlo do aparelho do PS, ainda pode virar primeiro-ministro muito mais cedo do que ele esperava. Um cenário que nem Marcelo nem Costa nem o poder económico desejam.
2 Vamos primeiro à miúfa dos atuais líderes dos dois maiores partidos do centro-direita, começando pelo CDS de Francisco Rodrigues dos Santos. Depois de muitos episódios trágico-cómicos nos últimos 2/3 anos, assistimos este fim-de-semana a uma espécie de suicídio político ao vivo e a cores, mais próprio de uma seita do que de um dos partidos fundadores do regime democrático.
E não, não estou apenas a falar das saídas de Pires de Lima, Adolfo Mesquita Nunes ou de Inês Teotónio Pereira, entre outras. Essas saídas são importantes mas o essencial da questão está aqui: o Conselho Nacional do CDS foi declarado ilegal pelo Conselho de Jurisdição mas mesmo assim continuou os seus trabalhos por decisão do seu presidente Filipe Anacoreta Correia e dos apoiantes de Francisco Rodrigues dos Santos.
Traduzindo por miúdos: o tribunal do partido decidiu que a reunião do Conselho Nacional não podia realizar-se mas não só a mesma avançou como foi decidido aprovar o adiamento do 29.º Congresso do partido agendado para 27 e 28 de novembro, onde seria substituída a direção em exercício de funções que, segundo o próprio líder Francisco Rodrigues dos Santos, acaba o mandato a 26 janeiro. Isto é, se o Presidente Marcelo marcar as eleições para 30 de janeiro ou 6 de fevereiro — as hipóteses mais prováveis —, o mandato de Rodrigues dos Santos já terá expirado… Se isto não é um golpe de estado interno, não sei o que será.
Só deixo as seguintes perguntas: como é que Francisco Rodrigues dos Santos (líder de um partido institucionalista e conservador que já foi liderado por figuras como Freitas do Amaral, Adriano Moreira ou Lucas Pires) se apresentará a eleições nacionais com fama de golpista — uma arma que a esquerda utilizará em peso? Como é que uma direção partidária, que aspira a participar num Governo da República, quer que os portugueses lhe confiem o voto se o seu líder não respeita as decisões do tribunal do partido? Acaso defenderá que João Rendeiro fez bem em fugir do país porque entende que a decisão de prisão efetiva “é injusta”? As respostas são óbvias e só os dirigentes do CDS, que mergulharam num profundo autismo político, é que não percebem isso.
O CDS morreu. É certo que a certidão de óbito só poderá ser passada em futuras eleições legislativas mas não acredito que qualquer líder do PSD, seja ele quem for, dê a mão a Francisco Rodrigues dos Santos e o salve de um resultado inevitável: a saída do CDS do Parlamento. Um partido que nem sequer sabe encontrar a paz interna, não é um parceiro sério, credível e fiável para uma coligação governamental.
E mesmo que Rio ou Rangel sejam caridosos, tal aliança levará inevitavelmente a uma fusão entre os dois partidos, tendo em conta o atual e enorme desequilíbrio na correlação de forças entre os dois partidos.
3 O que está a acontecer no CDS é uma excelente lição para as fações internas do PSD, nomeadamente a liderada por Rui Rio, aprenderem: quando as divergências passam a ser eminentemente pessoais, não há partido que resista.
É claro para todos que as divergências entre Rio e Rangel são políticas, estratégicas e até ideológicas. Enquanto que o primeiro assentou a sua estratégia na aproximação ao PS (estratégia que mantém para o pós-legislativas), o segundo quer lutar por uma maioria que congregue um espaço do centro-esquerda à direita moderada. Enquanto que Rio admite tanto alianças com o PS, como com o Chega, Rangel recusa negociar com os dois. E enquanto Rio defende um verdadeiro partido social-democrata, posicionado ao centro, centro/esquerda, Rangel defende a união das diferentes correntes de pensamento social-democrata, liberal e conservadora que sempre fizeram parte da história do PSD.
São dois projetos claramente diferentes que merecem ir a votos para reforçar precisamente o candidato do PSD a primeiro-ministro. Não tenho qualquer dúvida que, atendendo à pluralidade dos projetos políticos em cima da mesa, o candidato vencedor chegará com uma legitimidade reforçada às eleições legislativas.
Independentemente do que for decidido pelo Conselho Nacional extraordinário, finalmente marcado por Paulo Mota Pinto para o dia 6 de novembro, para a antecipação do Congresso do PSD, uma coisa é certa: quem ganhar as eleições internas de 4 de dezembro, fará as listas para as eleições legislativas antecipadas.
Uma decisão contrária ao que o bom senso democrático ordena, será colocar o PSD no trilho de auto-destruição do CDS — um trilho no qual, enfatize-se, ainda não está.
Uma coisa é certa: o facto do atual líder do PSD insistir no adiamento das eleições internas revela que Rio já percebeu que perdeu o partido. Mas mesmo assim quer ser o candidato do PSD a primeiro-ministro sem a devida legitimidade política interna — a tentação do golpismo é algo que definitivamente une Rui Rio a Francisco Rodrigues dos Santos.
4 E o cagaço do PCP e do Bloco de Esquerda? Se Rio e Rodrigues dos Santos perderam apoios internos, Jerónimo de Sousa e Catarina Martins sabem que vão ser castigados pelos eleitores por terem estado na origem da dissolução da Assembleia da República: o chumbo do Orçamento do Estado (OE).
Nenhum eleitor, nomeadamente da área da geringonça, perceberá que comunistas e bloquistas insistam em acrescentar uma crise política à crise pandémica e à incerteza económica claramente visível no horizonte com a subida sustentada da inflação e um crescimento económico que arrisca ser menos robusto em 2022 do que o esperado. Basta ler estas declarações do Presidente Emmanuel Macron ao Financial Times para percebermos os perigos em que a zona euro incorre — ameaça que é clara há mais de um mês.
A principal prova de como o PCP e o Bloco têm noção dos perigos eleitorais são as respetivas narrativas para o chumbo do OE — praticamente iguais. Na mesma lógica criativa dos socialistas de que não foi José Sócrates quem chamou a troika (mas sim Passos Coelho), comunistas e bloquistas criaram a narrativa de que o chumbo do OE não implicava a dissolução do Parlamento e que, em última instância, seria possível ao Governo apresentar uma segunda proposta orçamental.
Além das declarações do dirigente comunista Vasco Cardoso ao DN/TSF, a entrevista de Catarina Martins ao Expresso foi particularmente reveladora. Se para as legislativas de 2019, a mesma Catarina garantia (sem se rir) que o programa do BE era “social-democrata”, agora garante (a rir-se) que é de “esquerda” e “marxista”. E, mais extraordinário, depois de ter ouvido o que ouviu de António Costa, dos principais ministros e da líder parlamentar do PS durante o debate do OE, ainda acredita numa aproximação ao PS. O Bloco está desesperado por manter-se à tona quando sabe perfeitamente que o chumbo do orçamento correspondeu, como diz Luís Marques Mendes, à aprovação de uma moção de censura ao Governo e que vem aí uma grande tempestade eleitoral.
5 Apesar da perceção do eleitorado apontar para a responsabilização política do PCP e do Bloco, não tenho dúvida de que António Costa desejou esta crise política e prefere ir agora a eleições do que daqui a um ano. Não só para evitar que eventuais novas lideranças do centro-direita se consolidem, mas também porque a situação económica, com a subida generalizada dos preços, poderá piorar durante 2022.
Daí que Costa nunca tenha até ao momento hostilizado o Presidente Marcelo. Teria eventualmente razões para o fazer, alegando, como socialistas como João Ribeiro ou Miguel Prata Roque têm argumentado, que a Lei de Enquadramento Orçamental em vigor prevê, em caso de chumbo, a apresentação de uma nova proposta de OE.
Mas não é menos verdade que o Governo nunca manifestou a intenção de apresentar uma segunda proposta. E nunca chegou a demonstrar porque não havia condições políticas para tal, face às declarações de Marcelo sobre a inevitabilidade da dissolução do Parlamento face ao chumbo e face a toda a dramatização feita pelos próprios partidos da Geringonça.
Apesar de o cenário mais provável apontar para uma nova vitória do PS, existem riscos claros no horizonte que podem ameaçar a liderança de António Costa. Não falo de uma maioria absoluta do PSD (altamente improvável) ou de uma maioria de direita (improvável) mas sim de uma repetição dos resultados de 2015.
Ou seja, uma vitória do PSD com uma vantagem reduzida face ao PS mas com a esquerda (PS/PCP/Bloco + PAN) a continuar a ter maioria no Parlamento. É para mim claro que, neste cenário, Pedro Nuno Santos iria disputar a liderança do partido a António Costa para liderar essa maioria de esquerda e constituir Governo. E se o fizer, Pedro Nuno tem boas hipóteses de o conseguir, tal foi o trabalho de formiguinha que fez nos últimos anos para controlar o aparelho do PS.
6 O que dizer do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa? Em primeiro lugar, não esteve bem a impor logo à cabeça que a dissolução da Assembleia da República era a única solução. Não só se se precipitou como se colocou a si próprio num colete de forças do qual não conseguiu sair.
Dito isto, Marcelo tentou ser sempre coerente com a sua ideia de estabilidade, tentando evitar ao máximo o chumbo do OE, fazendo démarches junto do PSD/Madeira e recebendo Paulo Rangel (e Carlos Moedas) enquanto decorria o debate do OE. Exorbitou as suas funções? Muito menos do que o Presidente Mário Soares fez a Vítor Constâncio, secretário-geral do PS entre 1986 e 88. E ainda menos do que o mesmo Soares fez a Cavaco Silva, chegando a patrocinar um congresso da oposição ao então primeiro-ministro.
Na questão das datas para as eleições legislativas, basta recordar o aconteceu na crise do pântano em 2001:
- 16/12/2001 — data das eleições autárquicas de 2000 que levaram à demissão de António Guterres;
- 04/01/2002 – data-limite para apresentar candidaturas à liderança socialista;
- 18/01/2002 – convenção nacional do PS para eleger Ferro Rodrigues como secretário-geral do PS;
- 17/03/2002 – data das eleições legislativas antecipadas nas quais o PSD de Durão Barroso saiu vencedor.
Ou seja, o Presidente Jorge Sampaio criou as condições para o PS de Ferro Rodrigues se preparar convenientemente para as legislativas de 17 de março. Entre a demissão de Guterres e a data das legislativas antecipadas, decorreram cerca de 90 dias.
Sendo certo que o Governo não está demissionário e continua na plenitude das suas funções, Marcelo Rebelo de Sousa tem toda a margem para não se deixar condicionar com as sugestões dos partidos da Geringonça defunta e os pedidos (desesperados) de Rui Rio e Francisco Rodrigues dos Santos para marcar as eleições legislativas antecipadas para 16 de janeiro. Há um interesse particular destes últimos dois em adiar as respetivas eleições internas, tal como há um interesse político da esquerda (e do Chega) em que o PSD não seja liderado por Paulo Rangel.
Marcelo não pode deixar-se condicionar por estas pressões políticas e tem de guiar-se, tal como o próprio afirmou este domingo, pelo “interesse nacional”. E o bom senso — e a dignidade das instituições democráticas — manda que as eleições gerais sejam marcadas para 30 de janeiro ou 6 de fevereiro.
Texto alterado às 12h15
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