Quando o leitor se interrogar sobre que lições a classe política não aprendeu na dita primeira vaga da pandemia, lembre-se desta: a aplicação de critérios diferenciados consoante o destinatário. Para uns, as regras. Para os outros, as excepções e o poder de furar procedimentos e protocolos. Há uns meses, não faltaram incongruências que ilustrassem este desfasamento entre elites e povo. Mas sete meses após a Covid-19 ter metido os pés em Portugal, ainda não há critérios uniformes para lidar com infecções nem tratamento igual para todos. Quer dizer, no papel até há. Mas o que se observa no dia-a-dia é um país onde se safam aqueles que, com meios próprios, conseguem acesso privilegiado à informação ou a quem lhes resolva os problemas. E onde os comuns dos mortais penam, tornados reféns da ineficiência dos serviços públicos.
Veja-se o contraste em casos práticos. Esta semana, um ministro soube estar infectado com Covid-19, tendo antes participado em reuniões de trabalho e num Conselho de Ministros. Se o Governo fosse uma turma numa escola ou um departamento de empresa, iria um monte de gente de quarentena para casa. Como não é, fizeram-se rapidamente testes e cada membro do Governo prosseguiu a sua vida habitual. Ora, enquanto tudo isto aconteceu, há uma criança no ensino básico que nas últimas três semanas não foi à escola porque esteve infectada com Covid-19 e agora, que já tem um teste negativo à doença, não consegue regressar à escola — esta só o aceita quando o aluno apresentar um atestado de cura passado pela Autoridade Local de Saúde. Sim, é essa a indicação que consta no protocolo sanitário para as escolas. Só que há um problema: o aluno não consegue obter esse atestado por falta de resposta dos serviços públicos de saúde. E sem apoio da escola nesse sentido, nem sequer acompanhamento educativo relevante, a criança permanece esquecida pelos serviços de saúde, excluída da escola, cada vez mais penalizada na sua aprendizagem e agora também vítima da rejeição e do estigma social contra os “infectados”.
Outro caso prático. Numa escola em Sintra, um aluno foi penalizado com um dia de suspensão por partilhar o lanche com colegas, violando o protocolo sanitário — aparentemente de forma deliberada e após repreensão prévia. É um caso que reflecte bem as tensões inerentes à doutrina actual da escola-prisão (que não é culpa da direcção da escola), em que os miúdos são policiados constantemente e quase confinados às suas salas de aula. Mas é um caso também exemplar de como a aplicação das regras pode originar repercussões brutais sobre os mais frágeis (neste caso, o aluno), enquanto a outros se perdoam incumprimentos ou excessos. Quem não se lembra de Marcelo a brindar com motards, cerveja em riste, em Maio passado, sem máscara ou distanciamento social, quebrando regras sanitárias? Afinal, o Presidente dos afectos pode tudo. Mas o miúdo, que é indisciplinado, merece castigo exemplar.
Ministros com testes céleres e sem quarentenas obrigatórias; mas um aluno com teste negativo não consegue regressar à escola. Marcelo aos brindes com motards; mas um aluno que partilha o lanche com colegas acaba suspenso. O ponto nem é discutir casos isolados, mas salientar que, em dois pequenos episódios desta semana, aparece o retrato de um país com duas faces, onde os protocolos se aplicam mais a uns do que a outros.
Já sei o que me dirão: que tudo está como dantes e que essas duas faces já existiam. E, sim, em parte isso é verdade. Abusos dos titulares de “pequenos poderes”, ausência de bom-senso, excessos burocráticos na aplicação das regras, assimetrias de informação e ineficiência de resposta dos serviços públicos, nada disto é novo em Portugal. Tal como não são novas as desigualdades sociais e o tratamento desigual no acesso aos melhores cuidados de saúde, à melhor oferta educativa, à melhor defesa legal dos respectivos direitos. De forma mais ou menos evidente, isto sempre aconteceu num dos países da OCDE, onde o perfil socioeconómico das famílias mais determina os seus níveis de acesso a esses serviços. Mas, mesmo nada disto sendo novo, a pandemia ampliou os seus efeitos — pelo menos para alguns. E esta é uma bomba-relógio de ressentimento social à espera de rebentar. O espaço que separa elites e povo não pode ser um abismo intransponível porque, no dia em que for, é o projecto democrático que fica em causa. Ora, eu sei que, um dia, ultrapassaremos esta pandemia. Só não sei se, nesse dia, saberemos colar os estilhaços das fracturas sociais que a pandemia expôs.