Seis meses depois de termos começado a viver em pandemia, chegou o momento de acabar com ilusões que perduram no debate público. Uma dessas, é que não havia como estar preparado para os desafios que a pandemia impôs sobre as escolas e que fragilizaram a qualidade da formação escolar de milhares de crianças — talvez até de forma irreversível. Como é óbvio, um encerramento súbito da rede escolar gera dificuldades que são imprevisíveis e complexas, para as quais não há respostas perfeitas. Mas se não é exigível que se esteja 100% preparado, já é exigível que não se esteja 100% impreparado. E, desde Março, houve quatro grandes falhanços que mostraram como as escolas públicas estavam impreparadas. Por culpa própria? Não — só não correu pior graças ao trabalho dedicado dos professores e directores. Simplesmente, num contexto normal, as escolas públicas carecem dos meios necessários (humanos e materiais) para apoiar devidamente os seus alunos — e, depois, num contexto anormal em que esse apoio é ainda mais necessário, não há milagres.

Primeiro falhanço: o ensino à distância que não funcionou. Entre Março e Junho, o Governo alimentou a ilusão de que o ensino à distância era um substituto do ensino presencial para milhares de alunos do ensino básico. Mas não foi. O que algumas escolas conseguiram montar limitou-se a um ensino de emergência geralmente ineficaz para a aprendizagem, muito heterogéneo na qualidade e sempre dependente de meios tecnológicos das famílias e dos professores (o que excluiu uma enorme parte dos alunos, a começar pelos oriundos dos meios socialmente desfavorecidos). Face ao ponto de partida, não poderia ser diferente: Portugal tem as escolas recheadas de computadores obsoletos e é dos países da OCDE com piores ligações à internet — de acordo com os directores, apenas 32% dos alunos estudam em estabelecimentos de ensino onde a velocidade da internet é considerada “suficiente” (média da OCDE é de 67,5%). Como é que, com estas condições, seria viável um ensino à distância com mínimos de qualidade em Portugal, visto que em contextos normais não existe a possibilidade de usar dispositivos digitais nas escolas?

Segundo falhanço: os exames nacionais viraram anedota e deturparam o acesso ao ensino superior. Em Junho, observou-se o regresso ao ensino presencial. Mas, em vez de atribuir prioridade aos alunos do ensino básico (nomeadamente aos mais novos, visto serem os mais penalizados pelo encerramento das escolas), o Governo abriu as portas das escolas aos alunos do ensino secundário, numa tentativa assumida de tentar salvar a realização dos exames nacionais e manter o acesso ao ensino superior mais ou menos intacto. Só se salvaram as aparências. Como já explicou o Luís Aguiar-Conraria, as novas regras para os exames tornaram-nos ridiculamente acessíveis e converteram o acesso ao ensino superior numa lotaria onde o mérito, afinal, conta muito pouco e a igualdade de oportunidades é uma ficção.

Terceiro falhanço: o modelo de reabertura das escolas assemelhou-as a estabelecimentos prisionais. Seis meses depois do encerramento em Março, milhares de crianças reentraram pelos portões escolares para reencontrar amigos, professores e retomar o seu percurso de aprendizagem. Mas, em alguns casos, o que encontraram parece-se mais com uma prisão do que com uma escola. Os alunos não podem emprestar um lápis ao colega, são obrigados a permanecer horas seguidas numa mesma sala (por vezes até almoçam lá), os seus intervalos foram encurtados ou anulados, o recreio foi reduzido ao mínimo possível, a sua circulação nos espaços comuns é policiada. Lamento informar que isto não é apenas um ambiente inadequado para a aprendizagem, é também prejudicial à saúde mental e física das crianças, encontradas na situação de estarem proibidas de serem crianças.

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Quarto falhanço: a recuperação da aprendizagem é um logro. Decorre actualmente a terceira de cinco semanas destinadas à recuperação da aprendizagem, o que dito assim soa a uma piada de mau gosto. Por um lado, o contexto sanitário roubou às escolas muito do seu foco na educação e na aprendizagem — antes de ensinar, a prioridade tem sido garantir que as portas permanecem abertas, que não faltam professores e que há assistentes operacionais suficientes. Por outro lado, a recuperação da aprendizagem não é um acto de magia. As escolas portuguesas continuam a ser reprodutoras das desigualdades sociais que vêm de casa: a probabilidade de um aluno desfavorecido reprovar é 12 vezes superior à de um aluno de meio favorecido (a média da OCDE é de 5 vezes). Ora, sabendo-se que quem foi mais prejudicado pelo lockdown desde Março foram os alunos de contextos desfavorecidos, e sabendo que estes são aqueles que as escolas continuam sem conseguir resgatar, o prognóstico da recuperação da aprendizagem é extremamente reservado: é elevadíssima a probabilidade de estes miúdos ficarem mesmo para trás.

Era possível ter feito melhor em cada um destes momentos? Sim. A comparação com as escolas privadas deixa as escolas públicas numa posição desconfortável. Nos privados, em geral, houve aulas à distância, o mérito académico não foi dispensado, a reabertura do ensino presencial foi serena e a aposta na aprendizagem dos alunos assume-se prioridade absoluta. Não é por acaso que houve uma corrida das famílias ao ensino privado para este ano lectivo. Mas a conclusão mais importante, aqui, não é medir se um é melhor do que outro (ou vice-versa) — essa é uma discussão irrelevante que encaixa melhor nas bancadas parlamentares. A conclusão importante é esta: as privadas conseguiram fazer muito melhor porque têm à disposição meios de que as escolas públicas não usufruem. E, assim, constrói-se um ensino a duas velocidades: um que funciona bem para quem possa pagá-lo, um que não funciona tão bem para quem não tiver poder financeiro para escolher.

Dir-me-ão que isto não traz novidade e que a pandemia só destapou uma realidade já conhecida. Ora, o ponto é precisamente esse e arrasta uma pergunta: aceitamos esta diferença como uma fatalidade, ou vamos exigir mais de quem tem a responsabilidade de investir nas escolas públicas? Eu opto pela segunda. Não é aceitável que as escolas públicas se assemelhem a prisões porque faltam professores ou funcionários para abrir todos os espaços escolares – segundo inquéritos aos directores, Portugal tem 70% dos seus alunos em escolas com falta de pessoal, sendo o país europeu pior classificado no índice da OCDE de escassez de pessoal, só superado internacionalmente por Japão e Marrocos. Não é aceitável que os directores sintam falta de técnicos para apoiar os alunos desfavorecidos e, depois, se confirme que estes ficam sucessivamente aquém dos colegas. Não é aceitável que as escolas estejam atadas a equipamento tecnológico obsoleto e sem suficiente largura de banda de internet. No fundo, porque nenhum destes problemas apareceu ontem, não é aceitável que os mesmos problemas de há 10 anos continuem a determinar o quotidiano das nossas escolas.

As escolas falharam quatro vezes desde Março. Culpa da pandemia? Não, como vimos acima, a pandemia apenas expôs e ampliou problemas estruturais que já existiam. A responsabilidade é, portanto, do Governo — ausente de visão estratégica e cujas políticas erradas arrastam os mesmos problemas há anos. E, a menos que se ressuscite a “paixão pela educação”, a inacção reformista e a falta de investimento do Governo ficarão registadas como um estrondoso ataque à escola pública.