O retorno a Portugal nas férias assume para um emigrante um carácter de peregrinação. É o regresso à terra prometida depois de meses ou anos de árduo trabalho no país de acolhimento e uma recompensa em si mesma. Arriscar-me-ia a dizer que o sentimento por detrás, tão difícil de colocar em palavras, provavelmente melhor descrito com o tão famoso termo saudade, só pode ser verdadeiramente compreendido pelos portugueses que, como eu, pertencem a esta categoria de pessoas, os emigrantes.

Este verão dei por mim a percorrer os caminhos de Portugal, desta feita pelo interior. “Dei por mim” não será, contundo, a melhor maneira de descrever uma procissão deliberada, a qual organizei com cuidado e carinho ainda na minha casa na Alemanha. A minha ambição de conhecer o país que ainda me atrevo a chamar meu é exacerbada na sua intensidade pela distância que nos separa na maior parte do ano. Foi, então, com enorme entusiasmo que parti para esta aventura.

Foi numa manhã soalheira aquela em que eu, exausta de uma subida íngreme, passei a ombreira de uma porta de igreja. Para além do meu guia, o qual trazia impresso em papel à boa moda antiga e que me indicara este lugar, também o meu interesse por arte sacra me levou a visitar o interior. A visita prometia muito e parecia ter todas as condições para ser recordada com prazer. Uma funcionária simpática e prestável, depois de recolhido o euro obrigatório para a entrada, iniciou uma visita guiada em que explicou detalhadamente os extensos trabalhos de restauração que o altar sofrera e que tinham custado um quarto de um milhão de euros. O resultado era, contudo, na sua opinião, muito bom e merecedor da quantia. Acenámos e a palestra continuou, tomando um rumo incrivelmente caricato quando o tema da festa da aldeia e da visita da ex-ministra da saúde por algum bizarro golpe do destino assumiu primeiro plano.

A queda metafórica, e literal, da ministra era vista pela nossa discursista como uma enorme lástima. O motivo desta opinião foi-nos esclarecido prontamente de forma voluntária e não solicitada: a senhora tinha trocado duas de letra com a ministra e chegado à conclusão que viam a situação da saúde em Portugal da mesma forma. So far, so good, gostos não se discutem e comentar um tema do qual não se faz a mínima ideia não só é um ritual português, como universal. Quem sou eu para censurar?

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Ora, o que veio a seguir foi outra história bem diferente. A referida funcionária eclesiástica iniciou uma tirada inigualável e digna de uma caixa de comentários no Facebook em que a sua vida parecia depender de atacar membros da classe médica e de saúde. Pérolas do discurso são, entre outras, “os médicos que já ganham 5000 euros no privado (?), não podem trabalhar no público também?” – o clássico da comparação implícita do exercício da medicina com uma espécie de sacerdócio que deve ser praticado em regime de voluntariado e o argumento de que a formação para o exercício da medicina é tão ou mais longa e morosa que a da maioria das profissões (!) e, por isso, não digna de uma compensação monetária adequada de acordo com esta formação.

Estaria a mentir se não afirmasse que, enquanto membro desta tão infame classe, senti o meu sangue a ferver. Para bem da finalização da visita num local sagrado (sinto que devo relembrar este ponto), e depois da prévia contestação das alegações por parte de outros presentes, resolvi engolir em seco e sair dali o mais depressa possível sem ripostar.

Uma vez cá fora, perguntei-me se tinha acabado de sair da quinta dimensão. Fui informada por familiares que, afinal, só tinha tido um encontro imediato com a famosa opinião pública portuguesa. Fiquei em choque; três anos depois da minha saída, motivada por este e outros fatores, nada mudou para melhor, muito pelo contrário. Não só o estado do sistema nacional de saúde é de prognóstico reservado como a mesma população que depende dele lhe ameaça desligar as máquinas.

A ironia de obrigar a pagar entrada e gastar 250.000 euros numa igreja e achar este facto mais intuitivo do que providenciar condições decentes a quem salva vidas está incluída. Não que eu tenha alguma coisa contra restauração ou religião, mas digo-vos que numa situação de aflição vou rezar a Deus para que o médico que me vai tratar tenha dinheiro para viver e tempo suficiente para dormir, não para que eu possa ver a pintura que estava por baixo de uma cal qualquer. Não há nada pior do que ser a última doente no fim de um turno de horas desumanas e eu, enquanto médica e doente, não aconselho a experiência.

Enquanto profissional na área da saúde mental tenho sempre o objetivo de ver as experiências pelo seu prisma mais positivo e esta manhã não foi exceção. Finalmente uma luz no fundo do túnel: ganhar 5000 euros no privado e ainda amealhar no SNS. Não tardei em pôr os pés ao caminho e tentar descobrir este Santo Graal das vagas para clínicos, disposta a largar a minha posição germânica por esta atrativa oportunidade. Foi esperança de pouca dura. Ao contactar colegas de curso, fui informada de que esta lenda é como o monstro do Loch Ness, muito falada, nunca provada. Talvez devesse tentar a minha sorte na Escócia.

Retorno ao meu país de acolhimento com um sabor agridoce na boca. Da tristeza e desapontamento no coração prefiro não falar, para não ser apelidada de piegas. Afinal, já basta que não seja “resiliente” o suficiente. Só tenho um último pedido, contactem-me quando Portugal mudar a constituição para declarar um médico como um ser humano. Ou, em alternativa, se descobrirem onde posso arranjar a tal vaga. Até lá, boa sorte e evitem ficar doentes.