Temos uma Constituição que nasceu coxa. O período revolucionário impediu-a de ser um espelho real e verdadeiro dos valores da (quase) milenar nação portuguesa, subordinando-a à única ideologia desejável: o socialismo. É lamentável e particularmente subversivo o facto de a base jurídica do regime democrático ter sido instrumentalizada por quem pouco se importava com a representação dos valores do povo. 

A revisão de 1982 introduziu algumas (muito necessárias) mudanças do sistema político, tendo em vista a democratização do regime necessária à adesão à CEE. Desde aí, tirando as alterações na organização económica realizadas em 89, pouco mudou.

Contudo, a Constituição da República Portuguesa (CRP) nasceu e permanece excessivamente extensa, faltando-lhe a essencialidade necessária à reverência e sentido de identificação que o povo português deveria ter para com ela.

O debate sobre uma revisão constitucional, apesar de surgir num período de discussão do Orçamento de Estado, é sempre bem-vindo, sobretudo como barómetro da atitude dos vários partidos face à pedra basilar do nosso regime.

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PS

Começando pelo partido do governo, é sintomático que proponha quase nada além de alterações do vocabulário e a previsão de medidas privativas da liberdade em caso de “doença contagiosa grave”.

Caricaturando, é como se olhassem para a Constituição e considerassem que o único problema é falar-se de “direitos do homem” em vez de “direitos humanos”. Fica claro a quem serve o imobilismo e quem, com ele, se sente perfeitamente confortável.

A argumentação, distorcida, é a de que a Constituição representa um “consenso que merece ser protegido”, a importância da “estabilidade constitucional”. Certo dia, ouvi um deputado dizer que o partido mais conservador em Portugal era o PS. Não mentiu.

De modo arguto, procuram ainda descredibilizar toda a iniciativa e debate de projetos de revisão constitucional, referindo que “os Portugueses não têm qualquer problema com a atual Constituição” e que este processo, aberto pela “extrema-direita”, é inoportuno, alegando, imagine-se, o contexto pandémico e a guerra.

Em primeiro lugar, é claro que um documento cujo conteúdo é da ignorância geral gera poucos problemas, caros senhores deputados. Quanto à inoportunidade: para o PS, será sempre inoportuno mudar o que quer que seja.

PSD

Passando ao principal partido da oposição, vemos, da parte do PSD, uma atitude significativamente distinta.

Para além dos temas também abordados pelo PS (sustentabilidade ecológica, metadados e confinamentos), o projeto social-democrata tem a decência de incluir a proibição não só de associações de ideologia fascista, mas também de ideologias totalitárias no geral, o que é perfeitamente condizente com os sentimentos do povo português. Estejamos atentos a qual será a posição do PS sobre esta questão.

Excetuando o voto aos 16 anos de idade (honestamente, consideramos preparados para votar os jovens de 16 anos de hoje, a meio do ensino secundário, se não os considerávamos há 50 anos, quando aos 16 já se trabalhava?), o PSD elabora propostas pertinentes e com todo o cabimento, como na área da saúde (garantia de cuidados continuados e paliativos e complementaridade entre setor público, privado e social) e habitação (estímulo da oferta privada).

Talvez as alterações mais sonantes sejam o mandato único de 7 anos do PR, o alargamento dos seus poderes de nomeação e a redução do número de deputados. Todavia, mais do que as propostas em si, conta a atitude reformista do partido, contrastante com o imobilismo vigente.

Chega

Por sua vez, o Chega, muito ao seu estilo, propõe um conjunto alargado de alterações ao texto constitucional, algumas pertinentes, outras claramente enviesadas pelas obsessões bizarras do partido.

Consagrar Portugal como uma república soberana baseada no trabalho ou incluir a verificação da constitucionalidade da atuação do Presidente da AR são propostas sem cabimento, que descredibilizam debates relevantes, como a eliminação dos limites materiais à revisão constitucional (proposta também apresentada pela IL). Confrontado com a escolha entre a razoabilidade e as suas obsessões, não tem dúvidas em optar pelas segundas.

É por estas e por outras que o Chega deve ser visto, claramente, como um partido radical.

IL

Do lado liberal, as alterações são também bastante relevantes, a começar pelo preâmbulo. A IL pretende acrescentar ao texto inicial da Constituição uma evocação do 25 de novembro, tal como existe para o 25 de abril, equiparando o derrube do regime fascista ao impedimento da instauração de um regime comunista.

Pessoalmente, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A agenda liberal passa por se distanciar dos ditos extremos; aproveitar a polarização para crescer com os moderados. Contudo, apesar da justíssima e pertinente menção ao 25 de novembro, tanto a definição do antigo regime como fascista, como a visão do 25 de novembro como o dia que impediu a instauração de um regime comunista contribuem mais para a polarização do debate histórico-político do que para a sua pacificação.

Prosseguindo, os liberais, no que concerne ao direito à habitação, tema mediaticamente capturado pela esquerda, apresentam uma visão da função do Estado como promotor da construção privada, com todo o bom senso: são as pessoas que constroem as suas casas, não o Estado.

Avançam ainda com uma alteração ao artigo 80º, que definia a subordinação do poder económico ao poder político democrático, frase digna de qualquer Constituição socialista ou, imagine-se, da Constituição de 1933, que estabelecia que o Estado tem o direito (…) de coordenar e regular superiormente a vida económica. A eliminação do estatismo consagrado na CRP, sem qualquer cabimento para um país europeu em 2022, é, portanto, uma das bandeiras da IL nesta revisão.

BE

Por último, analisamos o projeto do Bloco de Esquerda, cujas bandeiras são “novos direitos”, “solidariedade” e “clima”, muito à imagem do BE.

A estratégia do Bloco consiste em ignorar o debate de certas questões divisivas politicamente, consagrando-as subtilmente como direitos na Constituição, como se de consensos nacionais se tratasse.

Assim sucede com a gratuitidade do ensino superior, camuflada sob o lema de estabelecer a gratuitidade de todos os graus de ensino.

Outra das propostas com a tal subtileza bloquista prende-se com a inclusão do direito dos trabalhadores a participarem nos lucros das empresas (mas não nos prejuízos) como um princípio constitucional, sem a devida atenção a cada caso particular e à liberdade económica dos pequenos e médios empresários.

A carga ideológica é também patente nas propostas na área da saúde: o preconceito para com os privados leva o BE a definir que o Serviço Nacional de Saúde tem obrigatoriamente gestão pública.

Os preconceitos ideológicos não ficam por aqui, mas o que sobressai do projeto bloquista é a escassez de uma visão para o país para além de mais estatismo, disfarçada pelas inúmeras propostas em matéria ambiental, que, ardilosamente, permitem ao partido credibilizar a apresentação do projeto de revisão.

De entre as várias propostas de revisão, faço votos de que resulte uma alteração substancial da Constituição, no sentido de reduzir o estatismo persistente e a Constituição ao reduto essencial de normas fundamentais ao funcionamento do país que, por regra, deveria constituir.

Com espírito de abertura, negociação e compromisso, esperemos que os políticos da democracia sejam capazes de ter uma visão límpida sobre a nossa Constituição e torná-la condizente com os sentimentos gerais dos portugueses. Que assim seja.