Putin celebrou mais uma vez o ritual patriótico do 9 de maio, da vitória da União Soviética na Grande Guerra Patriótica de 1941-45, com uma parada na Praça Vermelha. Costuma ser uma demonstração de força. Foi uma demonstração de fraqueza. É um bom momento para refletir sobre a vitória numa guerra. É mais complicado do que parece.
Um discurso grotesco
Começando pelo elogio, Putin falou pouco. Um sinal significativo de esgotamento. E reconheceu que esta é afinal uma verdadeira guerra. Mas foi, no essencial, mais da mesma propaganda grotesca que faz da novilíngua de George Orwell, já não ficção, mas triste realidade. O agressor é transfigurado em agredido. O Ocidente, supostamente degenerado e decadente, estaria por detrás de todos os males do Mundo. Putin mascarou-se de defensor dos valores da família, quando mandou deter o pai de uma jovem, que fez na escola um desenho ilustrando a agressão russa contra a Ucrânia, e a desterrou para um orfanato. A parada foi uma demonstração de fraqueza militar. Dos 197 veículos militares da última parada antes da guerra passámos para 51. De carros de combate restou um T-34, uma peça de museu, um modelo que entrou ao serviço em 1940.
Os líderes estrangeiros presentes foram uma demonstração de fraqueza diplomática. Em 2015, o líder chinês assistiu à parada, e terá havido esforços russos para que Xi voltasse, em vão. Foram seis, todos de Estados ex-soviéticos da Ásia Central, da Arménia e da Bielorrússia. The Economist designou-os clube dos nostálgicos da União Soviética. Mas a relação tem pouco de sentimental. E com a exceção da Bielorrússia, um satélite de Moscovo, nem sequer estes Estados estão totalmente alinhados com o Kremlin relativamente à Ucrânia. Temem, isso sim, futuras intervenções militares russas. Precisam de ajuda militar russa para lidar com a oposição ou com vizinhos perigosos. Têm grandes comunidades emigrantes na Rússia e uma grande interdependência económica. No caso da Arménia, as suas trocas com a Rússia cresceram mais de 200% neste último ano, provavelmente à conta de contrabando evadindo as sanções.
Não há novas pistas quanto ao rumo para a vitória russa. Só a reafirmação de uma ideia central na cultura estratégica russa: a vitória não depende do brilho no campo de batalha, resulta, custe o que custar, da excecionalidade da Rússia pela sua predisposição para aceitar mais sacrifícios e mais mortos. O que Putin esquece é que essa predisposição das lideranças do Kremlin para verem soldados como carne para canhão também resultou em derrotas catastróficas, como na Guerra Russo-Japonesa de 1904-05 ou na Primeira Guerra Mundial. Só foi possível evitar uma derrota catastrófica na Segunda Guerra Mundial porque a Alemanha nazi apostou numa política de exterminação e escravização que tornou a resistência a única opção racional. E porque a União Soviética fazia parte duma coligação com os países ocidentais. Os EUA forneceram uma ajuda massiva à União Soviética. Estamos a falar de 180 mil milhões de dólares de hoje – três vezes mais que a ajuda à Ucrânia. Estamos a falar de 400.000 jipes e camiões, de 12.000 veículos blindados, incluindo 7.000 tanques e de mais de 11.000 aviões. Pode considerar-se o envolvimento dos EUA em conflitos na Europa inaceitável, mas foi graças a ele que hoje a Rússia e os seus amigos podem fazer essa crítica.
O que é a vitória numa guerra?
A definição de vitória numa guerra parece fácil: derrotar o inimigo em batalha. Mas, como recorda Clausewitz, a guerra não existe por si, é a continuação da política. Por isso, numa guerra não bastam boas táticas e operações, porque não basta ganhar batalhas e campanhas. Uma boa estratégica é necessária para garantir que os ganhos militares se traduzem na concretização das prioridades políticas dos beligerantes. E é aqui que as coisas se complicam. Derrotar o inimigo a qualquer preço, serve? Uma vitória pírrica com um custo colossal é uma verdadeira vitória? Alcançar todos os objetivos é um objetivo realista? Isso é raro na política normal, em que um inimigo armado não está ativamente a disparar a matar para impedir esse desfecho. E ainda há outro problema fundamental. Será que, derrotado militarmente, o inimigo aceita a derrota e está disposto a formalizar as suas perdas numa paz durável? Isto, sem falar nas armas nucleares.
É possível derrotar uma potência nuclear? É, aconteceu com a União Soviética no Afeganistão e com os EUA no Vietname. Mas eram guerras de guerrilha periféricas. Também tem havido conflitos territoriais entre potências nucleares. Por exemplo, entre a União Soviética e a China, em 1969, ou entre a China e Índia, até ao presente. Mas não com a escala de intensidade ou com o caráter prolongado que este conflito já tem.
Uma vitória na Ucrânia?
Passado mais de um ano quais parecem ser os objetivos máximos dos beligerantes? Para a Rússia: transformar a Ucrânia num satélite subordinado ao Kremlin, ver reconhecido o alargamento do seu território, e demonstrar que o Ocidente não é um aliado fiável. Para a Ucrânia: recuperar todo território perdido, aderir à União Europeia e à NATO. Para o Ocidente: manter a sua coesão, reduzir a dependência de potências como a Rússia, defender as normas da ordem regional e global, e apoiar a Ucrânia, garantindo a sua efetiva independência. Para muitos países no Sul global, como a China ou o Brasil: um fim rápido e negociado do conflito, o regresso da economia mundial a business as usual. Para alcançar estes objetivos, até onde os beligerantes e os seus aliados estão dispostos a ir e por quanto tempo? O que a história nos mostra é que tal como os conflitos são dinâmicos, também os objetivos de guerra tendem a mudar.
O que é claro, para já, é que as posições estão muito afastadas. Por isso, Guterres, há poucos dias, deixou claro que o momento de negociações a sério ainda não chegou. Os beligerantes continuam a acreditar numa via militar. A Ucrânia, por via da superioridade do treino, comando, informações, operações. A Rússia, pela superioridade do seu patriotismo, da sua capacidade de sofrer e, ainda, por acreditar que o prolongar da guerra vai levar à erosão do apoio ocidental à Ucrânia. Antes de se perceber o desfecho das previsíveis ofensivas de primavera e verão não vejo que se possa voltar a negociações. Um desfecho militar mais favorável à Ucrânia não é impossível, como temos visto. Isso é extraordinário tendo em conta a assimetria inicial de meios de 10 para 1. Mas não será fácil, uma ofensiva nunca é. Muito dependerá da capacidade ucraniana de surpreender e flanquear as defesas russas, de reconhecer e explorar as fraquezas de uma linha defensiva tão vasta, de desenvolver eficazmente operações inesperadas, por exemplo anfíbias e, claro, da resposta russa. Os aliados ocidentais devem continuar a dar à Ucrânia os meios militares necessários. Mas devem também aproveitar para definir melhor quais seriam os mínimos aceitáveis de uma paz negociada. A pressão global nesse sentido vai aumentar com o prolongar do conflito. E os termos de uma paz negociada são historicamente fonte de tensões entre aliados. Se uma paz negociada será possível, essa é outra questão.