1Escrevia Ruchir Sharma na edição deste fim-de-semana do Financial Times que muitos (políticos, investidores ou simples cidadãos) ainda não perceberam que a era do dinheiro fácil acabou de vez. As taxas de juro a zero ou negativas não regressarão e novo standard para a taxa de inflação será mais perto dos 4% do que dos 2%. Contudo, muitos de nós sofremos de uma espécie de zeteofobia e nada fazemos.

Ou seja, em vez de sofrermos da ansiedade associada a decisões relacionadas com a nossa carreira profissional (o conceito de zeteofobia ‘cunhado’ pelo psicólogo e professor John Krumboltz), ficamos paralisados face a uma rutura que se impõe.

Parece-me que o diagnóstico de zeteofobia também é um ‘fato à medida’ de António Costa. Mercê das suas dificuldades em lidar com o escrutínio (talvez por ter sido sobreavaliado muitas vezes), Costa está paralisado.

2 Comecemos precisamente pelo último caso que envolve o Governo: a notícia do Observador que relata como Rita Marques, a ex-secretária de Estado do Turismo demitida “por telefone” pelo ministro António Costa e Silva, violou a lei das incompatibilidades.

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O caso é tão clarinho que não há lugar às famosas interpretações jurídicas.

Enquanto membro do Governo, Rita Marques atribuiu o estatuto definitivo de utilidade turística à HILODI –Historic Lodges & Discoveries, sociedade que pertence ao grupo The Fladgate Partnership. E agora, passado pouco mais de um ano após ter confirmado formalmente tal estatuto de utilidade turística e passados apenas 38 dias após sair do Governo, vai ser administradora desta última holding.

Qual é o problema legal? O problema é que a lei das incompatibilidades (que nasceu nos anos 90 e tem sofrido várias alterações), diz claramente no seu art. 10.º que os titulares de cargos políticos não podem exercer funções em empresas sobre as quais tomaram decisões e às quais concederam benefícios.

Ora, não só a HILODI – Historic Lodges & Discoveries ficou isenta das taxas devidas à Inspeção Geral das Atividades Culturais, como poderá beneficiar de futuras isenções de IMT, redução do Imposto de Selo, isenção de IMI durante sete anos, entre outros benefícios.

O que já disse o Governo e o PS por mais este caso — que compõe um ramalhete perfeito entre secretários de Estado sem condições para serem membros do Governo e outros (Rita Marques) que violam a lei das incompatibilidades após a saída do Executivo?

Absolutamente nada. Sofrem de zeteofobia.

Provavelmente, como fez a ministra Ana Catarina Mendes com esse grande autarca chamado Miguel Alves (que “deu muito de si à causa pública”), o PS até é capaz de elogiar Rita Marques…

3O Governo e o PS estão claramente paralisados na chamada questão ética — precisamente o ponto que está cada vez mais a por em causa a maioria absoluta de António Costa, tal como um amigo meu socialista previu logo em 2015.

Tal como já escrevi aqui, é a recusa de António Costa em tomar posições prévias ou a posteriori sobre questões éticas ou de conflitos de interesse que leva à promoção de uma forma muito proativa da judicialização da política. Porquê? Porque faz do Ministério Público ou dos tribunais uma espécie de crivo de quem tem ou não tem condições políticas para fazer parte do Governo.

A insensibilidade ética que o primeiro-ministro tem revelado não é de hoje — daí o prognóstico do meu amigo socialista em 2015. Tal como as suas mudanças de opinião nestas matérias fazem com que António Costa seja cada vez mais o Pimenta Machado da política nacional: o que hoje é verdade, amanhã é mentira; ou o que hoje é mentira, amanhã é verdade.

Façamos um pequeno exercício de memória:

  • Em termos de transparência, António Costa não viu nenhum problema em contratar logo em 2015 um dos seus melhores amigos, Diogo Lacerda Machado, para seu consultor no Governo sem qualquer contrato formal. Depois lá percebeu que se impunha a formalização de um contrato e que podia haver conflitos de interesse. Mesmo assim, assinou o contrato contrariado, por ser “dinheiro mal gasto”, pois claro.
  • Repetiu a brincadeira em 2020 com António Costa e Silva quando o contratou “probono” e como “mero cidadão” para construir um plano de reconstrução económica para os próximos 10 anos.
  • Também na questão dos familiares no Governo teve duas políticas opostas. Primeiro, e após a pressão da opinião pública, lá percebeu que não podia ter marido e mulher, pai e filha sentados à mesa do Conselho de Ministros. E, agora, porque dá jeito, extinguiu a regra e deixou que dois irmãos (Ana Catarina Mendes e António Mendonça Mendes) sejam membros do Governo. E até invocou (completamente a despropósito) o exemplo do seu irmão Ricardo Costa.
  • Contratou Miguel Alves para seu secretário de Estado Adjunto, mesmo sabendo que era arguido em dois processos criminais. Ainda numa das suas várias entrevistas natalícias, voltou a desvalorizar isso ao afirmar que Miguel Alves não era arguido por questões relacionadas com o Governo. O que não deixa de ser uma resposta extraordinária, tendo em conta que tal era praticamente impossível (face ao pouco tempo que Alves esteve no Governo) mas também porque demonstra que Costa vive numa super-bolha e nunca ouviu falar do caso do adiantamento de 300 mil euros ao fantástico empresário Ricardo Moutinho.
  • E no caso de Carla Alves, António Costa deu informações erradas ao Parlamento. Citando a ex-secretária de Estado, Costa disse que os montantes alegadamente não declarados pelo seu marido não tinham passado pelas contas conjuntas que Alves tinha com o marido. O que não é verdade, como pode ler aqui.

4 Se António Costa tem um histórico de insensibilidade ética, faz sentido que nunca tenha querido ter uma sistema de escrutínio interno dos proponentes a membros do Governo. Mas agora, uma vez mais pressionado, mudou de ideias e já quer montar um “circuito” entre São Bento e Belém para escrutinar os candidatos.

Obviamente, que a carta que António Costa enviou para Marcelo com uma proposta sobre o circuito é uma forma de responsabilizar o Presidente da República pela nomeação dos membros do Governo.

Haverá coisa mais básica do que a responsabilidade do primeiro-ministro na nomeação dos seus membros do Governo? Obviamente que não. Por isso mesmo, apenas fará sentido tal escrutínio interno (ou de vetting) no Governo ou na Assembleia da República.

O sistema ideal é mesmo aquele que foi proposto por Luís Marques Mendes no seu espaço de comentário e que adapta à realidade nacional o processo de designação dos comissários europeus: uma audiência parlamentar prévia de todos os membros indigitados pelo primeiro-ministro para o seu Governo.

Contudo, isso demorará o seu tempo.

Para já, António Costa precisa de uma solução urgente que pode passar por um questionário escrito com perguntas tão básicas como estas:

  • É arguido? Já foi acusado e/ou condenado?
  •  Tem problemas administrativos ou criminais com o fisco?
  • Qual o seu percurso profissional e em que conflitos de interesse incorre?

Respostas claras a estas perguntas resolveriam muitos dos problemas do Governo.

5 A paralisia das paralisias, contudo, é a incapacidade que António Costa e o seu Governo revelam ao não conseguirem promover uma agenda que promova reformas estruturais e permita transformar o país em termos económicos e sociais.

Ao fim de sete anos no poder, os socialistas não reformaram nada no Serviço Nacional de Saúde ou na Educação, mantém um modelo económico que é sustentado através do consumo e dos apoios sociais que o PS sempre distribuiu com grande generosidade.

Pior: alterou a fórmula de cálculo das pensões da Segurança Social, tendo cortado os aumentos que já estavam previstos para os pensionistas mas continua sem reconhecer um problema estrutural no financiamento do sistema de pensões.

6 É por tudo isto que já começam a surgir teorias de que defendem que António Costa devia demitir-se, meter férias e desamparar a loja, como defendeu Ana Sá Lopes no Público. Tudo para “salvar o PS” e para se salvar a si próprio.

Esse pode ser um caminho para chegar a presidente do Conselho Europa no final de 2024, evitando o desgaste político que ainda vai sofrer. Como também seria a melhor forma de o PS conseguir manter o poder, mesmo que não fosse em maioria absoluta.

Contudo, há vários pormenores a ter em conta:

  • Em primeiro lugar, duvido muito que António Costa queira atirar a toalha ao chão, sendo que tem mais hipóteses de influenciar a sua escolha para substituto de Charles Michel como membro do Conselho Europeu do que a partir do exterior.
  • Marcelo disse que convocaria eleições antecipadas, no caso de uma demissão de Costa.
  • E duvido muito que Pedro Nuno Santos queira ser uma espécie de Pedro Santana Lopes, tal como escreveu Jorge Pereira da Silva. Mesmo que se legitimasse politicamente em eleições antecipadas, é muito pouco provável que conseguisse renovar uma maioria absoluta.
  • Por outro lado, é duvidoso que uma Geringonça II durasse muito, só por o líder do PS se chamar Pedro Nuno Santos. O PCP e o Bloco de Esquerda estão muito mais fracos hoje do que estavam em 2015, precisamente devido à geringonça. Vão cometer o mesmo erro? Para quê? Para promoverem a sua extinção?

7 Resumindo e concluindo: o primeiro-ministro deve combater a sua zeteofobia, reconhecer os erros, propor membros do Governo íntegros e tentar resolver os problemas dos portugueses. À cabeça, a brutal perda de poder de compra.

É isso que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e os portugueses lhe exigem.