“Os comportamentos éticos decorrem de um princípio tão simples: quando eu administro aquilo que não é meu, com recursos que pertencem a todos, eu tenho que ser ético e virtuoso. (…) Isso exige que respeite os meus opositores e que seja escrutinado a qualquer momento. Daí que a transparência seja muito relevante. Porque o poder tem sempre, sempre a tendência para ir para zonas escuras.”

António José Seguro in “Debate sobre na apresentação do estudo ‘Ética e integridade na política”

1 Um estudo sobre “Ética e Integridade na Política”, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (ler aqui), marcou, e bem, a agenda pública na véspera da comemoração do dia internacional contra a corrupção. O que não é de surpreender tendo em conta a qualidade do mesmo e o facto de ter sido coordenado pelos investigadores Luís de Sousa e Susana Coroado.

Além da constatação da ausência de instituições políticas fortes em Portugal que promovam a ética e a integridade (particularmente, quando nos comparamos com outros países europeus), os investigadores utilizaram uma metodologia inovadora de entrevistas a cidadãos comuns (amostra de 1020 indivíduos) e a representantes políticos (amostra composta por 66 deputados, 55 presidentes de Câmara e presidentes da Assembleia Municipal) que permitiu cruzar dados e chegar a conclusões muito interessantes que se se resumem em duas ideias:

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  • a elite política tende a ser mais tolerante com as zonas cinzentas da corrupção, nomeadamente com os conflitos de interesse, as cunhas, o nepotismo, os favorecimentos administrativos — tudo o que não é crime mas é eticamente reprovável;
  • já os cidadãos tendem a ser menos exigentes com políticos que violaram a lei mas que apresentam resultados positivos em função do seu trabalho executivo.

2 Para o efeito deste artigo, prefiro concentrar-me no primeiro ponto. Para tal, vale a pena individualizar os quatro cenários concretos em que houve uma maior discrepância de avaliação entre cidadãos comuns e políticos:

A. Um ministro nomeou o seu genro como assessor de imprensa.

B. Um presidente de câmara atribuiu por concurso a construção de habitações sociais a uma construtora da região. O dono desta empresa apoiou financeiramente a campanha do autarca.

C. Um banco privado foi resgatado sob a tutela do ministro das finanças. Quatro anos após ter cessado funções, o agora ex-ministro foi convidado para presidente do conselho de administração desse banco.

D. Um indivíduo pediu à sua irmã, enfermeira num hospital, para falar com o médico a fim de antecipar a sua consulta que estava em lista de espera de dois meses

Como os coordenadores do estudo evidenciam, a normalização de certos comportamentos anti-éticos por parte da classe política, está na origem de tal discrepância. O nepotismo (situação A), financiamento partidário (situação B), portas giratórias (situação C) e abuso de poder (situação D) são desvalorizados pela elite política mas devidamente valorizados (e bem) pelos cidadãos comuns.

Uma das razões pela quais são desvalorizadas pelos políticos prende-se com o facto de a esmagadora maioria das situações não serem sancionadas pelo Código Penal. O que faz sentido, se olharmos para prática dos partidos e dos sucessivos Governos

3 Quando um primeiro-ministro vê um membro do Governo em apuros com a Justiça, costuma lançar mão do estafado conceito “à Justiça o que é da Justiça; à política o que é da política”. Na teoria, pretende-se evitar a judicialização da vida política.

Na prática, contudo, é uma espécie de demissão de uma regulação da “ética política” e uma recusa em “fortalecer a confiança dos cidadãos nos atores, processos e instituições políticas”, como indicam os investigadores.

Tal como defenderam António José Seguro (ex-líder do PS) e Miguel Poiares Maduro (ex-ministro do Governo Passos Coelho) num debate muito interessante sobre o estudo (pode ser visto aqui), nada disto é ideológico. Todos os partidos incorrem neste erro de não promoverem a construção de um sistema de integridade que proteja o sistema democrático e os seus representantes.

Por exemplo, a construção de tal sistema passa muito pelas ideias da reforma que Seguro liderou no Parlamento em 2007 ou da Comissão de Ética que Miguel Poiares Maduro propôs (juntamente com Leitão Amaro, Duarte Marques, Lídia Pereira e Carlos Coelho) no PSD para avaliar a integridade dos candidatos.

Ou ainda da institucionalização de um órgão ao nível da administração central que possa fazer um compliance interno de todos os candidatos a membros do Executivo. Tudo para detetar erros curriculares, falhas no cumprimento de deveres fiscais e contributivos ou até processos judiciais.

4 Para percebermos em que ponto estamos neste momento, recordemos o que António Costa fez recentemente enquanto primeiro-ministro em dois casos concretos. Porque isso diz-nos bem o que pensa Costa sobre conceitos básicos democráticos.

O primeiro-ministro resolveu convidar Miguel Alves para seu secretário de Estado Adjunto, com gabinete ao seu lado em São Bento, quando já sabia que Alves era arguido em dois inquéritos criminais por suspeitas de crimes económico-financeiros no exercício das suas funções de presidente da Câmara de Caminha.

Essa decisão consciente do primeiro-ministro tem duas leituras possíveis:

  • António Costa achava que o Ministério Público nunca se atreveria a avançar com uma acusação contra alguém tão próximo de si e que o próprio Costa tinha decidido colocar a trabalhar diretamente consigo na residência oficial do primeiro-ministro;
  • O chefe do Governo já passou para aquela fase que inevitavelmente atinge todos os líderes políticos há demasiado tempo no poder: a fase da impunidade.

Apesar de António Costa ter sido duramente criticado por quase todos os analistas pela incompetência política que demonstrou em gerir o dossiê Miguel Alves, não é menos certo que poucos valorizaram a estratégia de Costa para o pós-demissão de Alves: pressionar o Ministério Público para recuar no escrutínio ao Governo, como evidenciei aqui.

O segundo caso é a forma verdadeiramente extraordinária como o primeiro-ministro se recusa a dar explicações sobre a pressão que exercer sobre o ex-governador Carlos Costa para não retirar Isabel dos Santos da administração do banco BIC, tal como relatei no meu livro “O Governador”.

Com a cumplicidade do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa continua sem explicar como é possível transacionar a aplicação das leis que regem as instituições financeiras e o combate ao branqueamento de capitais por um opaco e estranho acordo com Isabel dos Santos. Quando a filha de José Eduardo dos Santos já era em 2016/2017 suspeita de operação de branqueamento de capitais — e que é hoje suspeita em 17 inquéritos criminais em Portugal. Tudo para mantê-la como administradora de um banco português.

Em qualquer democracia avançada, esta situação já estaria sujeita a um inquérito parlamentar para se apurar as responsabilidades de António Costa neste caso, tal como a de Mário Centeno e do próprio Costa no caso BANIF.

5 “Nos últimos meses, não foi nem uma nem duas, que o principio da separação de poderes foi beliscado — para não dizer que foi posto em causa. E passamos desse assunto para outro com uma leveza…” As palavras são de António José Seguro e foram ditas no debate acima referido.

Não constituem propriamente um regresso à vida política mas representam uma intervenção suficientemente marcante que mereceu a atenção da Opinião Pública. Não tenho grandes dúvidas de que Seguro se estava a referir ao caso Miguel Alves e à pressão sobre Carlos Costa — pois a separação de poderes não implica apenas o respeito pelo poder judicial mas também perante outras entidades independentes, como o Banco de Portugal.

O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa optou por ser cúmplice de António Costa, o PSD está a afrouxar na oposição que deveria ter, o poder económico prefere ser submisso a um Governo de maioria absoluta que ainda tem quatro anos para governar e a sociedade civil continua anestesiada.

“… E o país interessasse verdadeiramente com o apuramento dos factos?” — eis uma pergunta provocatória de António José Seguro que faz todo o sentido.

Anda muita gente distraída mas é bom que nos interessemos. Porquê? Porque, entre muitas outras razões, pode-se dizer que a “corrupção passa também por uma série de estratégias de influência, desenvolvidas no seio das próprias instituições democráticas, que visam manipular as políticas públicas e a regulação do mercado em benefício de grupos económicos”, como se pode ler de forma abstrata no estudo “Ética e Integridade na Política”.

E depois não digam que ninguém vos avisou quando começarem a perceber que o Governo Costa vai cair devido à questão ética — como um bom amigo meu antecipou logo em 2015.

PS – Fazendo o registo de interesses de que já publiquei um livro com a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), tendo colaborado noutras ocasiões com a instituição, não posso deixar de elogiar o contributo que esta fundação financiada pela família Soares dos Santos tem dado para um reforço da sociedade civil e, consequentemente, para um aprofundamento da democracia portuguesa. Classificada depreciativamente por alguns setores como a “fundação do Pingo Doce”, a FFMS segue a enorme Fundação Calouste Gulbenkian e demonstra como os grandes grupos económicos portugueses podem contribuir para a comunidade, importando os bons exemplos históricos filantrópicos de países democráticos, como os Estados Unidos, por exemplo. Quantas mais FFMS tivermos, mais forte será a sociedade civil — o grande e histórico calcanhar de aquiles português.