Os europeus que visitam o Brasil têm destinos evidentemente preferidos: as praias do nordeste, as praias do Rio e, por vezes, praias de Santa Catarina, como Florianópolis. Raros são os que optam por conhecer São Paulo, sem ser por razões profissionais. O que poucos sabem é que o litoral paulista também é dos mais bonitos do país – e que unir uma viagem à capital, com sua oferta infinita de boa gastronomia e cultura, com alguns dias no litoral do estado de São Paulo, poderia ser uma das melhores opções de viagem ao Brasil.

No entanto, há pouco menos de uma semana, essa sugestão de roteiro turístico foi interrompida. O litoral norte de São Paulo – meu favorito, onde sempre colecionei momentos e memórias, foi atingido pela chuva mais intensa já registrada na história do país, de acordo com o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Já são contabilizados 54 mortos, incluindo diversas crianças, centenas de feridos e milhares de pessoas desabrigadas.

Inicialmente, alguns poderiam pensar que se trata pura e simplesmente de uma catástrofe natural, mas a questão vai muito além disso e abarca diversas camadas da complexidade do Brasil. A primeira delas é, sem dúvida, a questão do desmatamento, das licenças extremamente questionáveis para construção em áreas que deveriam ser protegidas e os reflexos disso nas condições de preservação do meio ambiente. Nada disso aconteceu por acaso ou sem que houvesse responsabilidade humana envolvida.

Na sequência, é preciso abordar o impacto das questões sócio-econômicas nesse cenário. O litoral norte de São Paulo é conhecido por ser frequentado por uma camada bastante privilegiada dos paulistanos. Em que pese ser uma região construída por pescadores, povos nativos e migrantes nordestinos, o destino é apreciado por estrelas do surf, por artistas e por tantas outras pessoas com condições de arcar com preços pouco amistosos para se hospedar na região. Esse interesse gerou especulação imobiliária nas áreas planas e seguras, próximas ao mar, acarretando num deslocamento da classe trabalhadora para as regiões de morro, muito mais sujeitas a acidentes naturais.

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Essa mistura entre pessoas ricas e trabalhadores da região traz ao caso conotações bastante diferentes de catástrofes que não atingem pessoas mais privilegiadas – problemas em regiões mais pobres recebem atenção midiática, pública e privada em intensidade bastante diminuta. Eu mesma escrevi sobre isso no Observador recentemente, analisando o terremoto da Turquia.

Eu estava no litoral norte paulista durante o natal. Eu tenho dezenas de amigos que seguem ilhados no litoral norte, esperando condições de regresso a São Paulo. E esses certamente voltarão à segurança das suas casas na capital do estado. Mas o que acontecerá com quem vive ali? Com quem perdeu tudo, do pouco que tinha? Com quem perdeu os filhos, os pais, o companheiro? O que acontecerá com o turismo? Com quem vive disso?

Outra pauta relevante que foi levantada sobre o tema, é o racismo ambiental. Já eram previsíveis – e alertadas por especialistas – as probabilidades de um desastre na região, em virtude das chuvas de verão. O poder público poderia ter tomado medidas de prevenção, mas não o fez. Parafraseando meu amigo Jamil Chade, em nosso livro 10 Histórias Para Tentar Entender Um Mundo Caótico, não existem desastres ignorados, existem povos negligenciados – sobretudo os que vivem nos morros e nas áreas precarizadas e de risco.

Não se pode culpar exclusivamente o meio ambiente. Esse drama está intimamente conectado com escolhas de gestão, com prioridades de governo e com políticas ambientais. Esse desastre diz muito sobre o Brasil, sobre suas crises políticas, sobre falta de planejamento e sobre o impacto transversal da diferença social que assola o país como um todo. Não pode ser só um drama, é preciso que seja um indicativo de mudança.