Em 9 de Outubro de 1944, a escassos meses da derrota final que a Alemanha nazi haveria de vender muito cara, Churchill deslocou-se a Moscovo, para – como o próprio primeiro ministro britânico escreve no seu livro de Memórias da Segunda Guerra Mundial – “dividir as nossas responsabilidades quanto a cada país afectado pelos movimentos dos exércitos”. Traduzido de linguagem diplomática para expressão corrente, Churchill e Estaline reuniam para decidir, uma vez finda a guerra, que países ficariam controlados pelos aliados ocidentais e os que seriam  futuros satélites da União Soviética. Na reunião, conta o próprio Churchill, propôs a Estaline a seguinte divisão num papel que lhe estendeu sobre a mesa: Roménia, 90% para a Rússia; Grécia 90% para a Grã-Bretanha; Jugoslávia, Hungria 50% para cada lado; Bulgária, 75% para a Rússia. Estaline pegou num lápis azul assinalou a sua concordância com um visto e devolveu o papel.  Churchill conta nas Memórias, que terá dito a Estaline “Não poderá parecer deveras cínico resolvermos estas questões, tão vitais para milhões de pessoas, aparentemente de modo tão sem cerimónia? Queimemos este papel. “Não, guarde-o”, retorquiu Estaline”.

Como já devem ter notado, nem a Polónia, pela qual a Grã-Bretanha entrou na guerra, nem um país então recente chamado Checoslováquia, ficaram “divididos” no papel. Quanto à Ucrânia, nada havia a registar, pois esta nação era desde 1922 uma república soviética, apenas ocupada pela Alemanha desde 1941. Uma vez libertada e foi-o pelos próprios russos, voltaria simplesmente onde pertencia.

O conjunto dos países que até 1989 constituíram a famosa Cortina de Ferro e o Pacto de Varsóvia como resposta à fundação da NATO, são o resultado da correlação de forças entre a União Soviética e o Ocidente no final da Segunda Guerra. Esta entente feita em Moscovo entre Churchill e Estaline seria “ratificada” pelos Estados Unidos uns meses mais tarde. E como? Com a opção tomada pelos americanos quanto à tomada de Berlim. A sangrenta batalha por Berlim ficou exclusivamente a cargo do Exército Vermelho, por opção do comandante chefe americano Eisenhower e contra a vontade de Churchill, diga-se. Eisenhower – e disso convenceu o recém-empossado presidente Truman – preferiu poupar a vida de dezenas de milhar de soldados americanos na batalha de Berlim, em troca do futuro domínio dos países da Europa oriental pela União Soviética. Estaline queria tomar Berlim, mas fingia que não queria. Os EUA morderam esse isco e no fim de contas, foi a pedido dos americanos que os russos entraram sozinhos em Berlim, claro que com contrapartidas. Este acordo pode não estar num papel, mas foi assim que aconteceu e é deste modo que todos os historiadores o registam.

Com uma alteração aqui e outra acolá, o rascunho de Churchill de 9 de Outubro de 1944 durou até 1990, com o fim da zona ocupada pela União Soviética na Alemanha e com a retirada do Exercito Vermelho dos países da Europa de Leste, ao cabo de quase cinco décadas de ocupação.

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Nas condições de desagregação do poder comunista na Rússia em 1991 e em que o domínio soviético no leste da Europa caiu abruptamente, a retirada das forças russas, primou pela informalidade e precipitação.

Mas existem registos históricos muito credíveis daquilo que se passou. Na biografia de Gorbatchev de William Taubman (Prémio Pulitzer) os factos e os compromissos ficaram explícitos. James Baker, Secretário de Estado americano garantiu a Gorbatchev que nem a jurisdição, nem as tropas da NATO, se vão estender para leste da actual fronteira, isto é , “a unificação alemã não vai levar a que a organização militar da NATO se estenda para leste”

O Chancelar alemão Kohl repetiu isso até à exaustão e o ministro dos negócios estrangeiros Genscher, com o seu feitio mais expansivo, garantiu ao seu homólogo soviético Shevardnadze: “Para nós é garantido: a NATO não vai expandir-se para Leste”.

Hoje todos sabemos que estas palavras não foram honradas, mas antes de ver isso em mais detalhe, importa de novo voltar uns anos atrás.

A NATO foi fundada em 4 de Abril de 1949 e tem como fundadores, os países ocidentais que participaram na Segunda Guerra como beligerantes (Canadá, Estados Unidos, Reino Unido e França); invadidos pela Alemanha nazi (Bélgica, Dinamarca, Noruega e Países Baixos) ou invadidos pelo Reino Unido (Islândia) e um país neutral (Portugal), aliás o único neutral da Segunda Guerra Mundial, que foi fundador da NATO, já que Espanha, Irlanda, Suécia e Suíça, ficaram fora. É de crer, que se em 1949 os Açores fossem independentes, seria este “país” um fundador da NATO, ficando Portugal (que com Salazar de facto não cumpria os critérios e nem sequer foi convidado para fundador da ONU em 1945) ficado na fila dos aspirantes. Mas a geografia falou mais alto e os Açores eram e são portugueses.

Lentamente, ao longo da guerra fria, alguns outros países ocidentais foram aderindo, mas ainda hoje estão fora da NATO, por opção própria ou por consequência da neutralidade estabelecida durante ou após a Segunda Guerra, países como a Irlanda, Áustria, Suécia, Finlândia ou Suíça. No entretanto, países anteriormente membros do Pacto de Varsóvia têm vindo aderir sucessivamente à NATO, em clara violação dos acordos de 1990.

E chegamos à Ucrânia. Quando as tropas nazis invadiram vários países europeus, tiveram resposta militar de quase todos (exceptuando a Dinamarca, por razões de compreensível sensatez) e receberam um forte sentimento de repúdio ou indiferença das populações. Na Ucrânia, traumatizada fortemente pelo genocídio alimentar estalinista dos anos 20 e 30 do Séc. XX, os nazis foram recebidos com flores, embora os ucranianos rapidamente tenham percebido, que afinal tinham apenas trocado o purgatório pelo inferno.

Quando retomou a iniciativa após os desastres militares do início da invasão nazi, o Exército Vermelho retomou a Ucrânia aos Nazis e esta, ampliada com novas fronteiras, permaneceu como uma República soviética e foi membro fundador da ONU, como se de um Estado independente se tratasse, como o foram então a Estónia, a Letónia e a Lituânia.

A possibilidade da Ucrânia seguir o caminho dos restantes antigos países do Leste europeu na adesão à NATO não pode ser encarada do mesmo modo, nem pelo Ocidente, nem sobretudo pela Rússia. Das antigas repúblicas soviéticas existem duas (Casaquistão e Ucrânia) que pela sua extensão, importância geográfica e geopolitica, têm de ser cuidadosamente separadas de análises comovidas ou simplistas. Recorde-se que estes dois países eram potencias nucleares à data da sua separação da União Soviética em 1991 e renunciaram por iniciativa própria a essa condição de superioridade militar pelo custo financeiro que essa permanência no clube atómico lhes impunha. Acresce que no caso da Ucrânia, além da existência de uma maioria secular de população etnicamente russa na Crimeia (já retomada coercivamente pela Rússia), existem as repúblicas de Donetsk e Lugansk, cuja maioria da população também é russa e não pretende pertencer a um país que não é o seu, ou seja, não quer ser ucraniana. Não diferem nisso de muitas situações iguais em toda a Europa, cujas fronteiras têm sido ao longo dos séculos objecto de sucessivas alterações. E por causa disso não se têm iniciado guerras desde 1945, com a desonrosa e vergonhosa excepção para os europeus que foi a guerra civil da década de 90 na antiga Jugoslávia.

Com todo este complexo xadrez em cima da mesa, uma coisa parece certa: a aceitação da Ucrânia como membro da NATO, violaria tudo o que foi acordado em 1991, com os compromissos assumidos para o desmantelamento do Pacto de Varsóvia. A ideia de que cada país é livre de fazer as alianças que quiser e aderir aos tratados que pretender, é uma rematada mentira que a história se encarrega de desmentir.  A NATO não necessita da Ucrânia para defender qualquer interesse vital, enquanto a Rússia precisa e muito que este país seja pelo menos neutro. Basta olhar para o mapa da Europa e só não vê isso quem mesmo não quiser.