A “história”

Fui a uma consulta particular com um médico especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF), o Dr. José Albino, que me foi recomendado por pessoa amiga, seu paciente na Unidade de Saúde Familiar (USF) pública, onde também presta serviço.

Após lhe ter contado a minha história clínica e os sintomas do meu problema, prescreveu-me um exame radiológico bem como algumas análises clínicas, para fazer uma melhor avaliação da minha situação.

Teve o cuidado de me dizer que, para minimizar custos, eu deveria ter uma consulta com o meu médico de família para que ele me prescrevesse os exames de modo a que tivesse a comparticipação do SNS.

Fiquei a refletir porque é que o Dr. José Albino, nas suas funções de médico na USF, pode prescrever exames ao abrigo do SNS mas, como médico privado, já não está habilitado a fazê-lo. O que não acontece com os medicamentos, que ele pode prescrever, na sua clínica privada, para comparticipação ao abrigo do SNS1.

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Custos duplicados

Todos somos beneficiários do SNS, que se pretende, de acordo com a Constituição, tendencialmente gratuito, embora parte significativa dos portugueses tenham seguros privados de saúde ou subsistemas de saúde, de modo a poderem ter a acessibilidade que o SNS não consegue oferecer.

Na prática, estas pessoas suportam um custo excessivo para os seus cuidados de saúde pois parte significativa dos impostos que pagam serve para financiar o SNS e, para além disso, pagam os custos dos seguros privados ou subsistemas de saúde, como é exemplo a ADSE.

Sabemos que os gastos conjuntos do SNS (Continente) e SRS (Madeira e Açores) com laboratórios médicos e de diagnóstico foram, em 20182, de 347 milhões de euros, dos quais 59 milhões com prestadores públicos e 288 milhões com prestadores privados.

A despesa de SNS e SRS com farmácias, em 2018, foi de 1302 milhões de euros, ou seja, 3,8 vezes mais do que os gastos com laboratórios médicos e de diagnóstico.

Capacidade assistencial dos Médicos de Família

É público que atualmente, maio de 2022, existem cerca de 1,3 milhões de portugueses sem médico de família atribuído e estima-se que em 2022 existe a possibilidade de se reformarem cerca de 1.000 médicos3 especialistas em MGF originários dos grandes cursos dos anos 70.

Consequentemente poderá haver, adicionalmente, mais de 2 milhões de portugueses, sem médico de família caso não sejam contratados novos especialistas. Nos últimos concursos de entrada no SNS, de médicos MGF, houve uma parte significativa de lugares que não foram preenchidos.

Admitindo, com muito otimismo, que se conseguem recrutar neste ano de 2022, 200 novos médicos MGF teríamos em finais de 2022, cerca de mais 1,6 milhões de portugueses sem médico de família, num total acumulado de 2,9 milhões (quase 30% da população), o que seria extremamente grave em temos das consequências para a saúde desses potenciais pacientes e para o SNS.

Opções para resolver o problema

Existem algumas opções como, por exemplo, contratar médicos estrangeiros, o que não seria possível na Europa Ocidental onde faltam médicos MGFs e onde pagam melhor do que em Portugal. Se parte significativa dos recém especialistas MGF, preferem alternativas como a emigração, a medicina privada, ou fazerem urgências em hospitais públicos, melhor remunerados, como será possível atrair médicos estrangeiros de qualidade comparável?

A que se soma a questão do idioma, muito relevante na profissão médica.

Outra alternativa seria contratar médicos MGF portugueses, reformados. Mas, aparentemente não estão a ser dados passos nesse sentido.

Existe uma terceira solução mais rápida na satisfação das necessidades dos doentes, mais eficaz e económica, que seria o Governo legislar no sentido de que os médicos, no exercício da sua clínica privada, pudessem prescrever meios complementares de diagnóstico ao abrigo do SNS, tal como fazem os médicos do SNS. O que traria algum alívio ao sistema, no caso das pessoas que não têm médico de família atribuído ou dele voluntariamente prescindam deixando vagas para outros.

O que seria neutral do ponto de vista económico pois que se houvesse resposta adequada do SNS, no âmbito da MGF, as pessoas não teriam de recorrer à clínica privada.

Não devemos esquecer a pressão adicional que as urgências hospitalares sofrem pelo facto de pacientes, sem médico de família, recorrerem frequentemente aos hospitais, “entupindo” as urgências, com falsas urgências.

Questão antiga e promessas

Esta é um problema já com algumas décadas, pelo qual alguns médicos MGF se têm batido, sendo um caso paradigmático o do Dr. António Alvim médico de MGF, reconhecido ativista e colunista em questões de saúde, que em 1999 recebeu uma carta do então Presidente do PSD, posteriormente primeiro-ministro, que em resposta a uma sua carta lhe disse que a possibilidade de “comparticipação pelo SNS dos meios de diagnóstico requisitados pelos médicos na sua atividade privada” estava expressamente prevista no programa eleitoral.

Deve ter esquecido essa sua promessa depois de ser eleito primeiro-ministro ou não teve tempo, com a sua saída para a Comissão Europeia.

Já anteriormente, a então ministra Drª Maria de Belém Roseira, lhe tinha feito promessa semelhante, também não cumprida

Agora que temos um Governo com seis anos de experiência, que conhece bem este problema e que disfruta de maioria absoluta, talvez seja dada solução para estas muitas centenas de milhares de portugueses que não têm e, previsivelmente, não terão médico de família, no futuro próximo.

1 Esta “história” é ficção, mas o seu conteúdo corresponde à realidade que vivemos em Portugal

2 INE – Conta Satélite da Saúde, 2018

3 https://sicnoticias.pt/saude-e-bem-estar/mais-de-mil-medicos-de-familia-podem-pedir-a-reforma-este-ano/