– Não vejo grande coisa – disse-me Cassandra – mas eu não trabalho a dez anos, sou antiga, sofro de hipermetropia oracular. E para períodos tão curtos há vates de televisão.

– Em Troia vaticinaste a dez anos.

– Não, vaticinei muito antes, quando o meu irmão partiu para Esparta. Dez anos foi o que durou o cerco.

– Tens razão. Mas tem de haver algo, algum futuro.

– Algum sim, mas não suficientemente vistoso para aparecer nas minhas visões. A vossa geografia é pequena, sois uma miniatura, um país bonsai. Muito bonito, se for bem tratado, mas que não dá fruto, irrelevante no grande esquema das coisas. A única coisa que vejo, talvez a cinquenta anos, é um terramoto que arrasará a Polis erigida com mais areia que cimento.

– Meu Deus. Espero que isso seja uma metáfora.

– É esse o papel do vate e da vate (como vocês dizem agora), metaforizar futuros. Depois cada um lê consoante os seus sonhos e pesadelos. A Ocidental Praia Lusitana de que te falei no século passado também era. Tu é que interpretaste como Europe’s West Coast, cheia de brilho e esperança.

– Verdade. Tinha fé em sermos capazes de abandonar a doentia devoção a Santa Convenção, a santinha do mais do mesmo, dos lugares-comuns, hábitos e costumes.

– E afinal era só um resort para turistas. Bom, diz lá o que queres, que eu tenho uma agenda cheia.

– Eu queria saber dos próximos dez anos.

– Lá estás tu com os dez anos.

– É o tempo que prevejo ter.

– Queres que te diga quanto tempo tens?

– Não, Cassandra. Quero ter uma ideia dos próximos dez anos.

– Deixa ver… Onde é que pus os óculos?
Vejo uma Babel com vista prò mar
A bela geografia por dinheiro
E o boulanger p’lo vosso bom padeiro

– Uma Babel? Uma comunidade cosmopolita e multilingue, ou Babel é para ser tomada no sentido de balbúrdia e desordem?

– Ambos.

– Fala-me lá mais dessa Babel.

– Um condomínio litoral, aí no soalheiro fim da Europa, habitado por quem procura fugir da decadência do Oeste. Com prósperos expats, que uma vez acomodados à vida boa e tranquila no seu novo país, desejarão que ele se molde às suas necessidades e costumes, incompatíveis com a balbúrdia política e a inacção típica das vossas gentes. E uma vez vendida toda a vista e toda a amena e prazenteira costa, a bela geografia, seguir-se-á a geografia dos recursos: o lítio, os fósseis, tudo o que tiver valor, pois entre vós não há quem tenha recursos financeiros para neles investir. Até o grande e rico mar será alugado por contratos seculares, a vossa Zona Económica Exclusiva de que falam, falam, falam, mas onde nada fazem, pois hoje não está na natureza das vossas enfezadas elites nem sujar as mãos, nem molhar os pés.

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– Somos mais de falar e almoçar que de fazer.

– Curiosamente, esta ideia do país-condomínio fará o seu caminho nas décadas vindouras, servindo de modelo à transformação de outros países penúria, desde que pequenos e em temperadas geografias. Países de amenidades, socialmente desenhados para a vida tranquila, geridos segundo preceitos de governance inspirados nas grandes corporações e servidos por comunidades de cidadãos mansos, cuja permanência dependerá do comportamento e desempenho, uma espécie de KPI socioprofissionais. Democracias de acionistas, anunciadas no suplemento imobiliário do Financial Times como Riot Free Countries que, para efeitos de representação internacional e gestão doméstica, e com objectivo de criar valor para os condóminos, contratarão políticos e governantes dóceis, presidentes/CEO e primeiros-ministros/COO, talvez mesmo importando-os de países organizados onde se saíram bem.

– Ora aí está uma ideia nova, importar elites.

– Mas aí o modelo não funcionará. Atrás do condomínio, longe da vista, viverá o português, que serve o Estado, e o imigrante, que serve os novos residentes. No condomínio, o passeio dos nativos não será impedido, mas estes não se sentirão bem-vindos: nas lojas, cujos artigos estão fora de alcance, nas praias, tornadas semiprivadas, nos restaurantes, onde não se fala português e a conversa em voz alta, ruidosa e cheia de gargalhada, típica do vosso prandial convívio lusitano, não será tolerada. Continuarão pobres, vós os aí nascidos, e cada vez mais velhos, até porque os mais intrépidos e preparados com português e matemática já saíram à procura de futuro. Então, a saudade dos sonhos que tiveram trará ressentimento.
«E, como sempre acontece, as comunidades fugidas do que as aflige acabarão por trazer com elas os males de que tentam escapar…»

– Não queres nomear esses males?

– São os seculares, os que nascem da desigualdade social e das diferenças culturais, a que se acrescentará a seca e a inépcia estatal. No fim da década, os três grupos – os expats donos da vista, o proverbial 1%, vocês, os nativos, quase todos com o salário-mínimo, e os imigrantes – ressentir-se-ão uns dos outros; crescerá o ressaibo, alimentado pela penúria e atiçado pela demagogia dos homens fortes dirigida aos grupos exóticos ao país, consoante os ódios e invejas que se nutrem.
«Serão espoliados litorais em nome de quotas, embora, na verdade, para satisfazer o desejo da nomenclatura, que, tendo subido no aparelho de Estado, ainda vivia lá atrás. Nacionalizar-se-ão (ainda que pretensamente) os recursos, até então nas mãos de fundos caixa negra, e exigir-se-á a salvaguarda da identidade cultural, com a reposição da língua portuguesa nas fachadas das lojas, cartazes de rua e nos menus dos restaurantes, onde será obrigatória a inclusão da açorda, do ensopado de borrego e do bitoque. Os expats abandonarão a bela geografia, os imigrantes fugirão e vós ficareis orgulhosamente sós à mesa, diante do bitoque, a discutir como recomeçar. O tempo voltará para trás.»

– Deus nos livre Cassandra.

– O melhor é rezares a todos os deuses que a um só não resulta.

Pedro Bidarra, consultor de comunicação, escritor, ex-publicitário, partner da Wengorovius & Bidarra, é membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.