O Parlamento acaba de aprovar uma proposta de Lei apresentada pelo Governo que altera o regime jurídico das sociedades desportivas.

A proposta inicial do Governo apresentada no Parlamento e aprovada na generalidade era positiva e traduzia o que vinha inscrito na exposição dos seus motivos, ou seja, equilibrar a relação de direitos entre clubes fundadores e sociedades desportivas. Contudo, a versão aprovada em votação final global no Parlamento incorporou alterações introduzidas à última da hora em sede de especialidade, as quais representam um dos maiores ataques ao associativismo e aos clubes desportivos que há memória.

Assim, versão final da proposta de Lei nº 62/XV determina que um clube que tenha criado uma sociedade anónima desportiva não poderá, em caso algum e para todo o sempre, deixar de deter uma participação não inferior a 5% do capital social da sociedade desportiva. Por outras palavras, a um clube fundador fica subtraído o direito de transmitir voluntariamente as ações que componham a referida participação mínima, ficando perpetuamente obrigado a permanecer ligado à sociedade desportiva!

A consequência final visada por este regime é a impossibilidade do clube fundador se desligar de uma sociedade desportiva, ficando amarrado à mesma para todo o sempre e não podendo os seus associados decidir recomeçar a atividade desportiva desde a última divisão.

Do ponto de vista político, trata-se de uma opção legislativa errada e desconforme com a realidade do desporto nacional, em que as associações desportivas são a base da formação e da atividade desportiva.  Aos empresários  que se dedicam ao desporto é reconhecido o direito de fundar sociedades desportivas e de entrar e sair de uma sociedade desportiva associada a um clube fundador. Já aos clubes, com esta lei, não é reconhecido o direito de tomar a difícil (mas possível) decisão de se desligar de um empresário que detém o controlo de uma sociedade desportiva (que continua o seu trajeto sem o clube) e de recomeçar a atividade desportiva desde a última divisão e progredir através do mérito desportivo. Trata-se de uma mensagem política errada que premeia e fortalece empresários sem escrúpulos que existem no desporto nacional e que é contrária à livre iniciativa no desporto e à afirmação do mérito desportivo que a anima.

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Esta opção legislativa, para além de premiar os maus empresários contraria as bases da ordem jurídica portuguesa. O ordenamento jurídico português, em particular nas relações de direito civil e comercial, é traçado pelo princípio geral da inadmissibilidade de vinculações perpétuas ou de duração indefinida. A criação de um fenómeno jurídico em que o sócio está perpetuamente ligado a uma sociedade e para sempre impossibilitado de voltar a exercer uma atividade através de outra forma torna a sociedade comercial dona do seu sócio coartando a liberdade de iniciativa de uma associação desportiva.

A impossibilidade de existência de vinculações perpétuas ou ilimitadas é um princípio que decorre da ordem pública, reconhecido e desenvolvido por muitas gerações de doutrina e jurisprudência, e é um valor civilizacional. Os ordenamentos jurídicos contemporâneos instituídos na parte do mundo onde Portugal se insere estão fundados na dignidade da pessoa, na autonomia privada, na livre iniciativa, na igualdade de oportunidades, na realização pessoal e na livre concorrência. Uma vinculação perpétua entre duas pessoas viola esses princípios constitucionais.

A consagração de uma proibição absoluta e perpétua de transmissão de ações constitui uma compressão gritante e descaracterizadora do direito de propriedade (artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa). Ao vedar uma associação desportiva para todo o sempre de recomeçar uma empresa e desligar-se de outra, a proposta de Lei em causa também contraria a liberdade de iniciativa económica e os princípios da economia de mercado e da livre concorrência.

Finalmente, um clube desportivo também tem o direito à sua identidade pessoal e à sua imagem. A imposição a um clube desportivo de uma representação perpétua por parte de uma terceira entidade numa atividade desportiva retira ao clube, para todo o sempre, a possibilidade de autodeterminar a sua identidade e de projetar uma parte relevante da sua imagem exterior.

O Clube de Futebol “Os Belenenses” em 2018 iniciou a constituição de novos direitos desportivos e, em 2023, criou uma nova sociedade desportiva. Caso a lei que foi agora aprovada pelo Parlamento estivesse em vigor o Belenenses em 2018 não poderia ter vendido a sua participação social na B SAD e estaria condenado para todo o sempre a ser sócio da B SAD e do conhecido empresário que a controla desde 2012.

Esta Lei mesmo que entre em vigor já não atinge o percurso que o Clube de Futebol “Os Belenenses” trilhou desde 2018. No entanto a experiência do Belenenses obriga-nos a alertar para este tema. Em 2018 tomámos uma decisão que nos custou muito, ou seja, recomeçar desde a última divisão distrital. Acreditámos no nosso mérito desportivo, na força e no apoio da nossa massa associativa e deixámos seguir o seu caminho um empresário que, no nosso modesto entender, nada de bom aportava ao desporto nacional, aos atletas, aos associados  e à história do Belenenses. Cada um pôde seguir o seu caminho e os Tribunais confirmaram essa possibilidade.

O que este novo diploma vem determinar é um golpe brutal nos direitos dos clubes que poderão ficar condenados a ser escravos de sócios e empresários com os quais não se identificam. A mudança à proposta de Lei que foi inserida na especialidade pretende corrigir uma realidade que foi afirmada pelos Tribunais Portugueses no que diz respeito ao Belenenses, a qual, como é público e notório, converge com o sentimento profundo da comunidade desportiva nacional.

Aprovada pelo Parlamento esta lei está claramente Fora de Jogo. Duvido aliás que os Senhores Deputados tenham realizado o alcance do que aprovaram. Temos ainda um árbitro que a pode fazer parar e corrigir. Espero que não seja tarde demais.