No momento em que está em discussão pública uma nova lei para a formação inicial de professores dos ensinos pré-escolar, básico e secundário, que contém uma actualização dos pré-requisitos de formação ao nível da licenciatura para a admissão a cada mestrado em ensino (o grau necessário para obtenção de habilitação profissional desde 2007), era fundamental que se procedesse a uma revisão dos grupos de recrutamento. Esta é uma matéria sensível, com um histórico pouco feliz nos últimos 40 anos de legislação educativa, com importantes alterações no Decreto-Lei n.º 27/2006, de 10 de Fevereiro, que regula os actuais grupos disciplinares, alterado pelos Decretos-Lei n.º 176/2014, de 12 de Dezembro (com introdução do grupo 120 de Inglês para o 1º Ciclo) e n.º 16/2018, de 7 de Março (com introdução do grupo 360 de Língua Gestual Portuguesa). Em ambas as ocasiões, não se alterou tudo o que devia ter sido alterado e que talvez ajudasse a que tivéssemos hoje menos problemas de recrutamento em alguns grupos.

Sendo uma matéria muito técnica, importa clarificar alguns dos problemas e propor soluções legíveis.

Ao rever o Decreto-Lei n.º 79/2014, de 14 de Maio, alterado pelo Decreto-Lei, nº 176/2014, de 12 de Dezembro e pelo Decreto-Lei, nº 16/2018, de 07 de Março, o mapa anexo com os mestrados em ensino e sua dependência dos grupos de recrutamento existentes, o que sempre se saudou como uma evolução natural e necessária, devia ser já revisto ao mesmo tempo que se procedia à revisão do Decreto-Lei n.º 27/2006 para todos os grupos de recrutamento. A duas leis estão ligadas e não devíamos estar sempre a fazer averbamentos e correcções pontuais.

Vejamos alguns contextos problemáticos. Há um conjunto de disciplinas opcionais no ensino secundário, com diferentes realidades em termos de alunos inscritos e turmas constituídas, cujos docentes não são obrigados a possuir uma habilitação profissional idêntica a todos os restantes docentes: um docente de Ciência Política, Direito, Antropologia, Sociologia ou Psicologia não é obrigado a fazer um mestrado em ensino, porque não existem, mas porque não existem grupos de recrutamento destas disciplinas, logo esses professores não podem adquirir a mesma habilitação profissional que os restantes docentes. Existe ainda o caso da disciplina transversal ao currículo obrigatório de 12 anos: Cidadania e Desenvolvimento. Qualquer professor de qualquer grupo é um potencial docente desta disciplina, por isso existe hoje uma enorme diversidade de situações neste grupo fantasma alimentado com professores de outros grupos, muitas vezes contra a sua própria vontade, porque não foram formados especificamente para este efeito em ciências sociais de base.

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Assim, a criação de um grupo de recrutamento novo de Ciências Sociais seria uma solução flexível, porque podia acolher várias das disciplinas ausentes do quadro nacional, garantindo assim a adequação do perfil profissional dos docentes de Sociologia e de Cidadania e Desenvolvimento a um nível de formação científica na área das ciências sociais. Face à existência de algumas disciplinas de ciências sociais no quadro nacional de grupos de recrutamento (Geografia, História, Economia), restringir-se-ia este novo grupo de Ciências Sociais às áreas disciplinares de Antropologia, Ciência Política, Direito, Relações Internacionais e Sociologia, que nunca tiveram recrutamento autónomo para o ensino secundário.

Há condições para a criação de um outro novo grupo de recrutamento para Português Língua Não Materna (PLNM) e respectivo mestrado em ensino. É quase escusado justificar a importância desta disciplina na escola portuguesa de hoje, que só neste ano acolheu mais 30 mil estudantes estrangeiros. A situação destes alunos que não falam português e que estão nas nossas escolas públicas com toda a legitimidade obriga-nos a fazer um reenquadramento dos docentes de Português, sabendo que, por exemplo, temos formado muitos mestres em ensino de Português Língua Estrangeira que estão perfeitamente habilitados a ensinar PLNM e que não têm grupo de recrutamento onde concorrer. O PLNM não pode ficar sujeito a soluções ad hoc de contratação e afectação de recursos docentes como acontece até hoje, sacrificando quase sempre o já deficiente grupo 300 (Português). Assim, impõe-se a criação de novo grupo:

Os actuais cursos de Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico e de Português e História e Geografia de Portugal no 2.º Ciclo do Ensino Básico e Ensino do 1.º Ciclo do Ensino Básico e de Matemática e Ciências Naturais no 2.º Ciclo do Ensino Básico não podem estar dependentes, em exclusivo, da obtenção prévia de uma licenciatura em Educação Básica; e no Ensino de Português e Inglês no 2.º ciclo do Ensino Básico não faz mais sentido juntar Português e Inglês, duplicando a área do Português quando esta devia ser um grupo único (as razões históricas para os pares disciplinares do Português com outras disciplinas, que herdámos dos anos de 1980 por existir uma falta de cursos de formação de professores de Português, não faz mais sentido em 2023); assim, uma rearrumação do 2º Ciclo devia seguir uma lógica como:

Embora não seja necessário alterar os requisitos para o ensino de Inglês para o 1º Ciclo, este é o momento adequado para repensar o grupo 120 e o âmbito da sua actuação. Se em 2014 não existiam recursos humanos qualificados para se actuar no sentido de iniciar o ensino de Inglês no 1º ano do EB, hoje estão criadas as condições para que o currículo nacional seja revisto, passando a incluir essa oferta em todos os quatro anos do 1º Ciclo do EB, cumprindo finalmente o compromisso tantas vezes assumido por Portugal nas instituições europeias de que faz parte, mas que nunca conseguiu cumprir (do Conselho Europeu de Barcelona em 2002 até ao mais recente: “Education and Training 2020” Strategic Framework). De notar que um dos constrangimentos actuais para os docentes do grupo 120 – a enorme dispersão de turmas para formar um horário completo – a que estão sujeitos e que constitui um factor real de desmotivação para seguir para um mestrado em ensino que habilite para este grupo, podia ser mitigado com o alargamento do Inglês a todo o 1º Ciclo, reduzindo para metade essa dispersão actual (porque teriam então o dobro das turmas disponíveis) e motivando mais candidatos a optarem por esta via.

É justa a criação do grupo de Teatro e Expressão Dramática ou Intervenção Precoce, que a FENPROF tem vindo a reclamar, porque os docentes desta área disciplinar estão também numa situação insustentável de desprotecção legal. Recordo a Resolução da Assembleia da República n.º 34/2020, de 3 de Julho, que recomenda a criação de um grupo de recrutamento em intervenção precoce na infância.

O actual grupo 430 (Economia e Contabilidade), reduzido à oferta do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa para um mestrado em Ensino de Economia e Contabilidade, nunca fez sentido enquanto par disciplinar, por não ter referência directa a cursos de licenciatura que, de forma quase generalizada, separam claramente as duas áreas: as licenciaturas em Economia são uma coisa, as de Contabilidade outra bem diferente e em regra em instituições diferentes. Acresce que neste grupo circulam professores com outras formações científicas (Gestão, Direito e Sociologia, por exemplo). Também aqui faz sentido ter um grupo de Economia e outro de Contabilidade. A sugestão da APROCES – Associação de Professores de Ciências Económico-Sociais pode ser outra solução, se se abranger todos os licenciados, pré e pós-Bolonha, nas áreas científicas da Economia, Gestão, Sociologia, Direito e Contabilidade, embora fosse preferível criar o grupo de ciências sociais, onde a Sociologia e o Direito pudessem estar mais facilmente ancoradas.

A Ordem dos Psicólogos Portugueses há muito que reclama, com legitimidade, a criação do grupo de recrutamento de Psicologia, ausente de todos os quadros legislativos até hoje. Urge também criar este grupo e o respectivo mestrado em ensino de Psicologia, direccionado para os licenciados em Psicologia.

Um dos problemas mais graves que resulta da não adequação dos grupos de recrutamento à realidade das nossas licenciaturas é o dos grupos bidisciplinares de Biologia e Geologia (520) e Física e Química (510). Se as licenciaturas estão, logicamente, a funcionar de forma autónoma seguindo a história e a tradição monodisciplinar internacional destas disciplinas (até o prémio Nobel distingue o da Física e o da Química, precisamente porque são áreas científicas autónomas), nunca fez sentido que os grupos de recrutamento fossem bidisciplinares. É difícil entender como tais pares de disciplinas surgem ainda canonizados apenas na legislação portuguesa, o que impede formalmente de termos mais professores com habilitação profissional nestas disciplinas – e não os vamos ter enquanto persistir este erro.

Todas estas medidas de reordenação dos grupos de recrutamento, a par de uma boa revisão do Decreto-Lei 79/2014 para a formação inicial de professores, ajudaria a resolver problemas que se arrastam há demasiado tempo no sistema educativo português. Traria mais legibilidade e justiça curricular ao sistema. Ajudaria a um recrutamento de docentes mais próximo da realidade das formações de nível de licenciatura existentes em Portugal. Melhoraria o quadro de oferta de mestrados em ensino e assim podia trazer mais candidatos na ordem e sequência lógica das suas formações de base. Se se perder esta oportunidade, o quadro de habilitações dos nossos professores continuará a ser ilegível em muitos casos, confuso sem necessidade, repleto de iniquidades e pouco atractivo para muitos dos nossos jovens.

Professor catedrático da FCSH da Universidade Nova de Lisboa

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.