Fechando-se o ciclo de 8 anos de governação socialista na educação, fechando-se também o ciclo maior dos últimos 27 anos, dos quais governou 20, a única coisa que não podemos aceitar é o branqueamento da responsabilidade socialista no estado actual da educação portuguesa, em particular da escola pública. Mas é isso que já está a acontecer: prevalece um discurso sem autocrítica, distribuem-se já comendas e louvores dentro da grande família socialista, e finge-se que vivemos no melhor dos mundos. As visões de fora são também trabalhadas para que a realidade vivida aqui não seja nunca citada. O Governo socialista especializou-se em visões do País como um eterno Jardim do Éden, onde apenas existem as coisas belas. Os que cá vivem têm uma visão bem diferente da utopia que construíram.

A redução do abandono escolar precoce é uma boa medida? É, mas não é um triunfo de nenhum governo em particular, porque todos temos contribuído para isso desde 1974. E nos últimos 27 anos (20 de governação socialista), foi entre 2011 e 2015 (mandato de Nuno Crato) que se registou a maior redução (11 pontos percentuais); e em 2016 até subiu o abandono escolar, muito por causa do fim do ensino vocacional que nunca foi justificado. O muito glorificado Programa Qualifica, como o anterior Novas Oportunidades, serve apenas para construir estatísticas nacionais de formação escolar. Melhora a auto-estima de quem se forma, mas despreza-se aquilo que se aprende efectivamente e não se estabelece nenhuma relação com as actividades profissionais que deviam acolher tais diplomados e melhorar assim a produtividade. Nunca vi ninguém preocupado com aquilo que se passa nas salas de aula destes programas, com a baixíssima exigência daquilo que se espera ser aprendido, com a facilidade com que se distribuem diplomas a troco da capacidade de saber fazer um exercício elementar de copia e cola ou de saber perguntar o nome em Inglês para se ficar qualificado com um diploma do ensino básico ou secundário (multipliquem-se estes exemplos reais por milhares de outros e terão um bom retrato do sucesso pedagógico destes programas). A educação de adultos e os programas vocacionais para alunos que não acompanham a escolaridade regular são fundamentais em qualquer sistema educativo avançado, mas não têm de ser mascarados politicamente de programas de sucesso garantido por amor às estatísticas da educação portuguesa.

A redução das taxas de retenção são uma boa notícia? O Programa Nacional de Promoção do Sucesso Escolar é uma ilusão óptica: fica bem na fotografia dos relatórios internacionais, mas omite uma realidade e o preço real desse investimento. O fim dos exames nacionais de final de ciclo, a continuada aposta em exames de aferição inúteis e que apenas servem para roubar tempo a ensino efectivo, o aumento da burocracia administrativa para justificar a retenção dos alunos, a complexificação do processo de avaliação por domínios do conhecimento em desfavor de uma avaliação simples dos conhecimentos efectivamente adquiridos, a confiança extrema num Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória que nada de bom trouxe ao sistema público de educação, por uma forçada obrigação de tudo ter de se ajustar mecanicamente a um conjunto de “princípios, visão, valores e áreas de competências comuns” que descaracterizaram tudo o que importa fazer na sala de aula real, nada disto contribuiu para o desejado “currículo para o século XXI”. O resultado desta política de quimeras conduziu a péssimos resultados gerais de aprendizagem.

Hoje, aprende-se muito menos e, contraditoriamente, avalia-se muito mais e de forma mais ilegível e infundada, com conceitos adulterados em tantas grelhas de avaliação, com uma insustentável descrição dos resultados académicos em fórmulas facilmente viciadas, mascarando até ao limite todas as situações de efectiva incapacidade para aprender de forma regular. Estatisticamente, Portugal é um caso único de resultados académicos gerais positivos; em termos de aprendizagens reais adquiridas, os próximos resultados PISA irão certamente desmentir esta ilusão; aquilo que todos aqueles que vivem nas escolas reais ou com elas trabalham sabem que a escola pública ficou devastada na sua organização interna, no modelo de (sobre)avaliação das aprendizagens e na ausência de um modelo eficaz de recuperação dessas aprendizagens quando ficam praticamente proibidas as retenções (a questão maior de reter ou não reter não pode ser discutida em poucas palavras).

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Quisemos copiar, e bem, a maior parte dos países que não têm modelos de retenção, mas em vez de criarmos boas condições alternativas para quem não aprende de forma satisfatória, optou-se pelo caminho mais absurdo: baixando a exigência do que se deve aprender, superburocratizando o acto de avaliação das aprendizagens e dando-lhes ainda um quadro conceptual confuso e mal justificado teoricamente. Enquanto pai de um aluno numa escola pública, nunca tive tanta dificuldade em compreender o que é que está a ser ensinado e o que é que está a ser avaliado como hoje e isso diz-me tudo da falência do sistema.

A avaliação das aprendizagens é hoje melhor? Foi uma das grandes apostas do Governo socialista nos últimos oito anos. Numa estranha escola inclusiva, cujo conceito foi adulterado em nome de uma falsa integração de alunos com dificuldades especiais de aprendizagem, numa desastrosa organização do ensino geral e igual gestão de recursos humanos, num contexto de erradicação prática das retenções sem um plano eficaz para recuperar as aprendizagens ou quem não aprende ou não quer aprender de forma regular, num cenário em que o currículo ficou reduzido injustificadamente à sua expressão essencialista, em contextos escolares cada vez mais heterogéneos e multiculturais, num sistema autocrático de governo de agrupamentos de escolas muitas vezes adoptando medidas mais excessivamente zelosas do que a lei permite e num contexto de avaliação de desempenho docente cuja eficácia é nula na melhoria da profissionalidade de cada professor, o que nos pode autorizar a concluir que o ensino público melhorou e assim também o sistema de avaliação “inovador” que o socialismo utópico do PS fez renascer? Nada nos pode autorizar tal conclusão.

Costumo acompanhar os exames nacionais de 12º ano, em especial os de Português, porque tive a responsabilidade de fazer parte do júri nacional na década de 1990. Nos últimos anos, o grau de exigência desses exames tem caído a pique. Devia envergonhar-nos a todos aquilo que são hoje os exames de Português do 12º ano. Ironicamente, antes de termos um Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (desde 2017), o currículo nacional era mais exigente, os exames eram mais exigentes e os alunos tinham um perfil mais próximo do que se espera à saída da escolaridade obrigatória, que é, não esquecer, o mesmo que trazem à entrada de um curso de Ensino Superior (ES). Os alunos que recebemos hoje e vamos continuar a receber à entrada do ES não estão minimamente preparados para o nível de exigência, que não baixou, felizmente, de todas as áreas disciplinares.

Perderam-se oito anos e lamento ter contribuído um pouco para isso: em 2015-16, estava convicto de que o sistema de flexibilidade curricular, aliado às metas curriculares exigentes, podia ganhar em legibilidade se lhe acrescentássemos versões simplificadas para uma melhor gestão do currículo. Assim, aceitei ser consultor das aprendizagens essenciais de Português (e das línguas estrangeiras informalmente). Inexplicavelmente, o Despacho n.º 6605-A/2021 veio revogar as metas curriculares e transformar o que era o sumário de cada currículo disciplinar no currículo único e fundamental de cada disciplina. Para mim, este foi o maior erro da governação socialista e algo difícil de perdoar, porque trouxe consequências desastrosas para o ensino público.

Temos, assim, montado um processo curricular odioso que pode demorar muitos anos a corrigir: glorificou-se a simplificação do currículo nacional e deu-se igual glória a um sistema de avaliação das aprendizagens desse currículo com base numa pseudo-inovadora tríade de elementos (“conhecimentos, capacidades e atitudes”), acompanhada por uma doutrinação mágica sobre essa avaliação, que tem conduzido as escolas, os alunos, os professores e os educadores a um estado de burn-out pedagógico e epistemológico que convém mesmo esconder dos retratos internacionais onde vendemos a nossa alegada boa imagem educativa. (Podia escrever uma tragicomédia com as interpretações e práticas avaliativas que hoje vemos nas nossas escolas públicas ao som da música de embalar do Maia.)

Em que estado ficou a carreira dos professores? No Ensino Pré-Escolar, Básico e Secundário, a teimosia em não respeitar o mesmo direito de recuperação do tempo de serviço prestado em comparação a outras carreiras especiais (a narrativa cínica do Governo socialista omite sempre as comparações evidentes para tentar isolar o problema dos professores) conduziu a uma situação insustentável: um docente com mais de 45 anos não conseguirá chegar ao topo da carreira sem uma significativa perda financeira (e muitos ficarão a meio da subida íngreme dos escalões) e sem a possibilidade de se reformar com a expectativa de uma carreira normal. Se juntarmos a isto uma promessa, que vem dos programas de Governo desde 2015, de correcção da injustiça da falta de apoio aos docentes deslocados da sua área de residência (acordar agora para o problema e circunscrevê-lo apenas a quem é colocado em Lisboa ou no Algarve faz parte da política despudorada de fingir que se dá muito dando pouco a poucos), perguntamo-nos que espécie de dignidade profissional se dá a esta profissão fundamental no desenvolvimento de um país e que espécie de motivação se espera de quem a exerce em tais condições?

Outro exemplo: ouvem-se os panegíricos em causa própria sobre a redução das distâncias nos quadros de zona pedagógica, mas esconde-se a armadilha de obrigar depois a concorrer de novo a nível nacional a quem por aí for. A justiça na política de carreiras profissionais começaria, por exemplo, pelo candidato a secretário-geral do PS, José Luís Carneiro, se aceitasse dar aos professores deslocados os mesmos 750 euros que reclamou para si próprio de subsídio de alojamento por ter residência a mais de 150 km de Lisboa. A lei amiga dos políticos deslocados existe desde 1980, mas, neste caso, convinha acabar com o cinismo de querer proteger a equidade nas carreiras quando falamos dos professores deslocados. Convinha que o socialismo governante não tivesse receio de dar aos outros o que sempre deu a si próprio.

Ficou resolvido o problema da falta de professores? Respondo, sem tentar repetir o muito que já escrevi sobre este assunto. Neste momento, aguardamos a publicação de um novo diploma sobre formação inicial de professores que recupera o sistema de estágios remunerados, e que por si só é uma medida consensual. O que se lamenta é não ter sido possível fazer isso logo após o primeiro sinal de que essa falta seria inevitável (está no preâmbulo do DL nº 79/2014 e está logo nos relatórios iniciais do CNE: Formação inicial de professores, Fev, 2016, e Estado da Educação 2018). Esta renovação da formação inicial, num diploma não isento de problemas de organização logística do novo modelo e que nunca foi acompanhado do reforço financeiro das instituições de ES, para que pudessem aumentar as vagas dos cursos nucleares, não vai resolver por si a falta de professores. O que os jovens hoje querem, no momento de pensar se é para esta profissão que querem seguir, é simples. Interrogam-se: É bem paga? Não. Compensa arriscar uma deslocação para longe da minha área de residência e sobreviver com o vencimento de um professor do 1º escalão (1080 euros após descontos)? Não. Sem resposta positiva a estas duas questões práticas, dificilmente conseguiremos atrair mais jovens para esta profissão, mesmo que a sua motivação inicial aponte para aí.

A escola pública arrisca transformar-se numa tragédia até 2030 por falta de planeamento estrutural e por políticas cínicas e ineficazes. Em breve, vamos precisar de uma espécie de troika para a educação em Portugal e quem vier a seguir pode ter já a sua agenda completa só para reverter o mal que foi feito. E, como sempre faz, o socialismo utópico vai dizer que a culpa da tragédia não é do seu tempo nem da sua responsabilidade. Perditio temporis.

Professor catedrático da FCSH da Universidade Nova de Lisboa

‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.