Em novembro de 2016, fui ao Porto de propósito para ver a peça Monument 0.1: Valda & Gus (2015), de Eszter Salamon, que seria apresentada no Museu de Serralves. Desde 2010 que a coreógrafa húngara se dedica à ideia de monumentos coreográficos, peças de homenagem, por um lado, e de reescrita da história contemporânea a partir da história da dança, por outro.

Valda Setterfield e Gus Solomon Jr. foram, entre muitas coisas, bailarinos da primeira geração da companhia de Merce Cunningham, com a qual estiveram em Portugal em 1966, para apresentar uma série de quatro espectáculos em Lisboa, Porto e Coimbra, promovidos pela Juventude Musical Portuguesa e pela recém-criada Fundação Calouste Gulbenkian.

Valda e Gus iam voltar a dançar em Portugal, cinquenta anos depois, mas a peça de Eszter Salamon acabaria por não acontecer. No aeroporto, em Nova Iorque, Valda, octogenária, caíra ao chão antes de entrar no avião com destino ao Porto. Quando aterrou foi directamente para o hospital com dores e descobriu-se que tinha o braço (ou o pulso) partido. O espectáculo e toda a digressão da peça na Europa foram cancelados depois deste episódio que obrigou os dois bailarinos a regressar aos EUA. Nessa altura tive a oportunidade de cumprimentar ambos em Serralves acompanhados pela sempre cuidadosa curadora de artes performativas Cristina Grande. Valda claramente arrasada e Gus um pouco irritado.

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A primeira vez que vi Valda dançar foi num filme de Yvonne Rainer, Lives of Performers (1972), numa cópia pirata digital que será apresentado em versão restaurada em setembro no Queer Lisboa. De vestido de gala preto, Valda dançava com uma bola ao som de uma ária. Recordo-me vivamente da coreografia que resumia algumas das preocupações de Rainer: o poder emocional da música contraposto a uma performance exímia de movimento quotidiano com uma bola.

Reencontrei Valda em novembro do ano passado no estúdio de Cathy Wies, no número 537 da Broadway, em Manhattan, onde se organizou um evento para rever e discutir as performances históricas de 9 Evenings: Theatre & Engineering (1966), de cujo painel participava a investigadora Sílvia Pinto Coelho. Valda tinha o espírito de diva do dia-a-dia. Uma beleza extrema e humilde, com os olhos do tamanho da sua experiência do mundo. Já mal conseguia andar e a Covid obrigava-a a estar de máscara o tempo todo. Ficou na sala mais de oito horas, a rever silenciosa e atentivamente o evento de 1966.

No ano passado escrevi um texto para a revista Electra sobre a vinda e recepção da Merce Cunningham & Dance Company a Portugal em 1966. Tentei falar com o máximo de pessoas da companhia que participaram dessa digressão. Consegui conversar com a desenhadora de luz Beverly Emmons, e com Gus, numa entrevista online adiada por duas vezes porque sempre se esquecia. Quando conseguimos finalmente falar, Gus disse apenas que não se lembrava de nada. Gravei essa entrevista, mas perdia-a com o computador que deixei ficar num avião e nunca mais apareceu. Alguém ficou com esse computador e com a memória que ele continha. Não era só armazenamento, eram arquivos pessoais, experiências e memórias que desapareceram para sempre. Quem ficou com ele não saberá do que lá está, nem se interessará por dança nem por bailarinos. Ou talvez sim, e esteja com vergonha de o retornar, mas guarda os ficheiros que lá estão para que sejam reencontrados e revistos no futuro quando também eu já tiver desaparecido. Que memória é essa que se perde para sempre quando um bailarino desaparece?

Alguns dos testemunhos de Gus ficaram no texto que escrevi. Uma das coisas que mais me marcaram foi ter-me contado que a companhia de Cunningham recusou sempre apresentar-se no sul dos EUA onde a segregação racial ainda era institucionalizada nos anos 60, informação a que Gus nunca teve acesso até recentemente. Quando o questionei sobre comentários que encontrei na imprensa portuguesa sobre a sua cor de pele, respondeu com naturalidade que provavelmente “para muitos espectadores seria a primeira vez que viam uma pessoa negra” e, mais ainda, “uma pessoa negra em cena a partilhar espaço com pessoas brancas”. Disse também que nada sabia sobre Portugal, nem sobre Salazar, nem sobre a Guerra Colonial que se lavrava na altura. Sobre Lisboa lembrava-se somente de um romance com alguém que foi ao seu encontro à porta de artistas no Tivoli depois do espectáculo e o levou a jantar. Sobreviveram as memórias afectivas.

Vi Valda dançar ao vivo pela primeira e última vez na mostra de performance paralela à exposição Judson Dance Church: The Work is Never Done organizada no MOMA, em Nova Iorque, em 2019. Participava da remontagem de uma peça de David Gordon, seu marido, chamada The Matter (1971/2018). Um corpo sem a mobilidade que a fez conhecer. Um corpo que transparecia toda a mobilidade que alguma vez teve e a sua experiência vivida.

A Gus nunca vi dançar senão em filme. Os seus saltos destemidos, com o corpo esguio, impressionavam-me sempre. E tranquilizavam-me quando as minhas colegas de turma faziam pouco de mim por ser demasiado rígido a dançar. Sempre tive especial apreço pela técnica Cunningham pois sentia que se enquadrava melhor ao meu corpo.

Em abril passado faleceu Valda Setterfield e, na semana passada, Gus Solomon Jr. Bailarinos são também património imaterial da humanidade. Guardam nos seus corpos experiências sensíveis ínfimas e intransmissíveis, sencientes e singulares. Gus e Valda dançaram praticamente a vida toda. O seu percurso é demasiado grande e importante para tão poucas palavras. Guardarei para sempre no meu corpo a memória e a imaginação de os ver dançar.