Sei que andamos ocupadíssimos com os laços familiares da esquerda e com os convites da direita para conselhos de administração, mas, não negando a importância nacional que tais temáticas carregam, talvez consigamos arranjar um tempinho para algo igualmente significativo. No curto espaço de nove dias, o governo português e a Comissão Europeia divergiram publicamente, não sobre metas orçamentais ou intervenções na banca, mas sobre um assunto em particular: a China.
Se a 3 de março de 2019, há cerca de três semanas, o primeiro-ministro português criticou Bruxelas por “protecionismo” em relação ao investimento chinês, a Comissão Europeia não tardou em expor Portugal como desalinhado, considerando o regime de Xi Jinping um “rival sistémico” que promove “modelos alternativos” – isto é, anti-democráticos – de governação. Por cá, no entanto, nada se ouviu. A União Europeia assumiu pela primeira vez que o expansionismo da República Popular da China representa uma ameaça para o continente e os jornais portugueses, que tão competentemente cobriram a visita de Xi e toda a sua digressão de acordos, não fazem perguntas?
Façamo-las.
- O governo português acompanha a Comissão Europeia no seu pedido de “maior reciprocidade” e “abertura” da China às regras da ordem internacional? E fê-lo saber na sua receção a Xi Jinping?
- O governo português subscreve a opinião da Comissão Europeia acerca da “indisponibilidade da China para aceitar regras de responsabilização e escrutínio”, sendo que tal “enfraquece a sustentabilidade da ordem internacional”? E fê-lo saber na sua receção a Xi Jinping?
- O governo português partilha da preocupação da Comissão Europeia acerca “da deterioração dos direitos humanos na China, nomeadamente em Xinjiang”, com minorias ativamente perseguidas? E fê-lo saber na sua receção a Xi Jinping?
- O governo português reconhece, como a Comissão Europeia, que a “China construir plataformas movidas a carvão põe em causa os objetivos do Acordo de Paris com os quais se comprometeu”? E fê-lo saber na sua receção a Xi Jinping?
- O governo português reconhece, como a Comissão Europeia, que a “crescente capacidade militar da China e a sua ambição de ter as forças armadas mais modernas do globo até 2050 representam um risco de segurança para a Europa, inclusivamente no curto-prazo”? E fê-lo saber na sua receção a Xi Jinping?
- O governo português reconhece, como a Comissão Europeia, que a “China se tornou um concorrente estratégico da Europa, falhando em reciprocar o acesso aos seus mercados”? E fê-lo saber quando assinou 17 acordos bilaterais com a China? E quando assegurou a cooperação de Portugal com a iniciativa Belt and Road?
- O governo português reconhece, como a Comissão Europeia, que “o investimento estrangeiro em setores estratégicos pode criar riscos para a segurança na Europa”? E que isso “é particularmente relevante em infraestruturas críticas como as redes 5G”? Se sim, como justifica o apoio governamental a um acordo entre a Huawei e a Altice para “acelerar o desenvolvimento e capacitação da rede 5G em Portugal”? Se não, com que argumentos irá explicar-se no Conselho Europeu?
Face às mudanças em curso, de que a reação da Comissão Europeia é fruto, o debate sobre o posicionamento português tornou-se obrigatório. Mais do que isso, é imperativo criar condições para uma realinhamento estratégico do Ocidente, impulsionando três valências: um multilateralismo habilitado a conter os impulsos menos ponderados das suas maiores potências, um multilateralismo empenhado em defender globalmente os direitos humanos (designadamente, as condições laborais na Ásia e os crimes contra a humanidade na Venezuela) e um multilateralismo capaz de recuperar credibilidade junto de si próprio.
Portugal, com a sua tradição diplomática e a sua vertente atlântica, poderia ter um papel a desempenhar nesse realinhamento.