O que têm em comum o Guião para a Reforma do Estado (2013), o Código de Conduta do Governo de António Costa (2016) e o grupo de especialistas para o bem-estar animal criado pelo actual Governo (2020)? À primeira vista, nada. Mas, na prática, une-os um dos mais velhos truques da política: criar-se uma realidade paralela no papel, para a manipulação da percepção pública. Em português, chama-se política do faz-de-conta.

É o faz-de-conta-que-há-um-plano: em Outubro de 2013, o vice-Primeiro-Ministro Portas preparou e lançou o guião para a reforma do Estado, um documento pouco mais do que inútil na substância e nunca realmente concebido para orientar uma reforma da administração pública — o seu único propósito foi aparecer no papel para sacudir a pressão política sobre o então líder do CDS. E é o faz-de-conta-que-os-procedimentos-são-transparentes: em 2020, o Governo português criou o grupo de trabalho para o bem-estar animal, composto por especialistas e representantes do Estado, encarregando-o de determinar critérios para a escolha de uma Provedora dos Animais — no entanto, o mesmo Governo nomeou uma pessoa para o cargo, ignorando o grupo de trabalho e dispensando os critérios.

O Código de Conduta, que o Governo de António Costa introduziu em 2016, é outro exemplo — neste caso, o faz-de-conta-que-nos-preocupamos-com-a-ética. Criado na sequência de um caso polémico, o seu propósito político foi evidente desde o primeiro dia — servir de alibi e limpar a pressão sobre o Governo, em vez de constituir um real instrumento para garantir uma conduta eticamente irrepreensível no exercício de cargos políticos. Repare-se que o Código de Conduta não fixou quaisquer mecanismos de fiscalização concretos, que permitam efectivamente avaliar o seu cumprimento, limitando-se a introduzir regras abstractas (a maioria já existente na lei geral) e de aplicação quase sempre discutível. Muito menos definiu procedimentos a seguir para prevenir ou resolver situações onde se possa verificar um conflito de interesses ou eventual “infracção”. É letra-morta, absolutamente inútil enquanto instrumento de monitorização da conduta dos governantes — mas útil para exibir em debates parlamentares.

Isso ficou (novamente) exposto com o actual caso do apoio do Primeiro-Ministro à candidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica, integrando a sua comissão de honra. Vieira será em breve acusado na Operação Lex, um caso que expôs a corrupção no seio da Justiça portuguesa. O seu nome surge ainda associado a inúmeros outros casos e situações duvidosas, incluindo algumas com contornos políticos e nas quais beneficiou largamente (como a reestruturação da dívida de uma empresa sua ao Novo Banco, com ganhos de mais de 200 milhões de euros). Como tal, independentemente do risco de se associar a tal figura, o apoio formal do Primeiro-Ministro pode ser usado como um benefício para o presidente do Benfica nas suas várias lutas judiciais. Ora, dizem-nos, nem isso chega para violar o Código de Conduta. A pergunta que falta é esta: haverá alguma situação plausível de acontecer que viole inquestionavelmente esse Código de Conduta? Provavelmente, não.

De papel em papel, Portugal viciou-se no faz-de-conta e consagrou-se como um país de fachadas, onde as leis se escrevem para prevenir o seu cumprimento, as regras só existem para os outros, as montras são para inglês ver e, no fim, tudo se decide nos bastidores das manobras políticas. Para muitos, este pode ser motivo para encolher os ombros, porque tudo parece estar lá longe e fora do nosso alcance. Mas, institucionalmente, há sempre soluções. Neste caso Costa-Vieira, seria esta: se a Justiça tem as mãos atadas e a oposição parlamentar está domesticada, a autoridade do Presidente da República permitiria levantar um muro entre a política e as más companhias de António Costa. Só que nada feito: Marcelo opta pelo calculismo das insinuações subtis, promete recados à porta fechada e dá o assunto por encerrado. É assim, neste beco sem saída, que as democracias se tornam elas próprias de papel: com instituições tão enfraquecidas e desvalorizadas que, um dia, cairão ao mais leve sopro de vento.

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