1 António Costa afirmou recentemente, após reunião com a Direcção Executiva do SNS e com o Ministro da Saúde, que “estamos a consumir um bem escasso”, uma vez que há um recurso elevado às urgências, pelo hábito português de se “correr para o hospital em vez de ligar para a linha Saúde 24”.

Ora, para quem, por fruto da introversão e ansiedade odeia chamadas telefónicas, mas adora multitasking, há uma solução: a profissionalização dos médicos-lojistas. Se se está a perguntar se lojista é com “j” ou com “g”, posso garantir que se for escrito com letra de médico, tanto faz, e apenas os farmacêuticos irão perceber se quem escreveu a receita cometeu um erro ortográfico ou não. Na dúvida, volte a ler o título deste artigo.

Mas em que consiste esta solução? Nada mais, nada menos, que a requisição civil de todos os lojistas que tenham curso de primeiros-socorros. Desentupia-se o SNS dos problemas menos graves e, se fosse o caso de o médico-lojista ter uma drogaria, aproveitava-se também para se comprar um desentupidor de canos.

É melhor entendido imaginando este cenário. A dona Emília sente-se engripada e vai ao consultório mais perto de sua casa, a Boutique SNS. Dá uma voltinha pela loja, e assim que a lojista (Doutora Carla) lhe pergunte como tem passado, Dona Emília revela tudo o que sente. Senta-se na marquesa que está instalada nos provadores da loja, e a Doutora Carla, após examinação, receita-lhe ibuprofeno e sugere-lhe ainda um cachecol e umas meias grossas, para não apanhar frio até chegar a casa. “Combinam mesmo com a sua cara de doente, Dona Emília!”. E assim, Dona Emília leva o papelinho até à farmácia mais próxima, já agasalhada, para curar o seu mau-estar. Se se estiver a perguntar se se escreve “mau-estar” ou “mal-estar”, garanto que, escrito à mão com a minha letra de médico, tanto faz, já que ninguém iria perceber o erro. E atenção, eu não sou médico, mas letra de médico é algo que herdei do meu pai. E se estiver agora a achar que o meu pai é médico (ou lojista), desengane-se. Apenas tem uma letra imperceptível.

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2 Há semelhanças impossíveis de contornar. Em muitas lojas estará à porta uma sinalética com a expressão “volto já em 5 minutos”, colocado há meia hora. Ou pior, a dizer “aberto” com a porta claramente trancada. No caso de isso acontecer, deve-se ligar para o balcão de informações do Shopping Nacional de Saúde para lhe indicarem quem o pode atender.

Mais, tenha atenção com os saldos. Podem levar a inevitáveis filas à porta das lojas e dos provadores de quem fizer mais barato. No caso de ser necessário, o médico lojista deverá apontar na caixa registadora todas as horas extraordinárias que tenha feito.

E cuidado com os apitos. O alarme que parece que se está ouvir pode ser um pacemaker desregulado de um doente cardíaco e não de um gatuno.

As frases habituais de experientes lojistas devem ser ponderadas ao contexto. Acabe-se com o “queria, já não quer?”, e acima de tudo, que nunca se pergunte ao cliente/utente se “precisa de ajuda, ou está só a ver?” porque a resposta pode vir de alguém que esteja com uma súbita doença ocular.

O médico-lojista poderá estar vestido com uma bata e esperar que ninguém se bata para conseguir o último par de saltos altos bonitões dos altos saldos e liquidações. Mas a acontecer, está no sítio certo pois o doutor terá sempre um kit de primeiros-socorros, e depressa arranjará uma compressa.

E, claro, a triagem do utente passará sempre por uma ourivesaria, que fornecerá as pulseiras de acordo com a urgência de atendimento.

3 Quero levar este plano de negócios ao Shark Tank.

Do lado dos tubarões estaria o Ministro da Saúde, Manuel Pizarro; um jovém recém-licenciado da geração mais bem preparada de sempre; um anarco-capitalista sem coração; e, por fim, um alemão. Apresentar-me-ia da seguinte forma: “Olá, Tubarões! Não sou médico, apesar de ter estado a estudar para o ser, mas acabei por desistir desse percurso logo na escola primária”. Falaria um pouco deste projecto, e de seguida ouviria as opiniões dos Tubarões, que imagino as seguintes.

O alemão diz que pensava que estava noutra anedota e abandona o estúdio. Ainda assim, acrescenta que não está a par destes problemas todos no seu serviço nacional de saúde.

O jovem recém-licenciado diz que não quer investir com os seus impostos neste projecto e então está fora e aproveita a boleia do alemão.

O Ministro da Saúde afirma que apesar de não se importar de sobrecarregar outras pessoas, o Ministério das Finanças não lhe dá o plafond necessário para mandar ainda mais dinheiro para cima dos problemas de uma das áreas onde o estado deve também ser garante. O que é estranho já que de Medina a Medicina está um “sim” sonoro de distância.

O anarco-capitalista sem coração aceita, porque não se importa de sobrecarregar pessoas, misturar caixas registadoras com saúde e tem dinheiro para mandar para cima de projectos estranhos, mesmo que se esteja a falar de negócios que envolvam áreas sensíveis.

Talvez com um episódio desses se perceba que, quando o estado falha, ficamos sem opção de escolha em matérias fundamentais, e os jovens preparados saiem para os lagos de outros tubarões europeus.

Caro leitor, se estiver na dúvida se se escreve “saiem” ou “saem”, reflicta sozinho como quem se automedica. Qualquer dia nem haverá letra de médico para esconder os erros do português.