Um casal apaixonado. Umas férias num país da América Latina, paradisíaco mas problemático em matéria de segurança. Um tiroteio em plena rua. Aterrorizado, o marido dá corda aos sapatos e desaparece, deixando para trás a mulher. Casal desavindo, férias arruinadas. Foi num incidente real como este, que sucedeu a um casal conhecido, aliado a um “clip” visto no YouTube sobre uma avalancha de neve que ameaçou turistas, e à sua vontade de rodar um filme no casulo de conforto de uma estância de esqui de cinco estrelas, que o realizador sueco Ruben Ostlund se baseou para fazer “Força Maior”, nomeado para o Globo de Ouro do Melhor Filme Estrangeiro e premiado na secção paralela Un Certain Regard do Festival de Cannes. É a história de uma catástrofe natural que não chega a acontecer, mas provoca uma catástrofe no interior de uma família até aí harmoniosa e feliz.

Um casal sueco, Tomas, Ebba e os seus dois filhos, um menino e uma menina, vão passar as chamadas “férias de sonho” a uma estância de esqui de luxo dos Alpes franceses. No segundo dia, quando a família almoça com outros hóspedes na varanda do restaurante do hotel, dá-se uma avalancha que começa por parecer controlada e inofensiva, mas que de repente vira ameaçadora, levando à fuga dos comensais em todas as direções. Afinal, não foi o desastre que parecia ser, o hotel não chegou a ser atingido e ficou apenas uma nuvem de neve no ar. Quando a visibilidade e a calma voltam, percebemos que Tomas fugiu em pânico, enquanto Ebba ficou a proteger as crianças. O instinto de autopreservarão do pai levou a melhor sobre a sua obrigação de defender mulher e filhos do perigo. Não contente com isto, Tomas recusa-se a pés juntos a admitir que fez o que fez.

O incidente ameaça fazer implodir a família. Para Ebba e para os filhos, Tomas deixa de ser o marido e pai admirado, responsável, protector. Os laços de confiança e de segurança rompem-se. O marido tem vergonha de si mesmo mas não admite a culpa, a mulher sente-se traída e revoltada, os filhos temem que os pais se separem. As ondas de choque emocionais e psicológicas manifestam-se, entre silêncios de tensão e explosões de recriminação. O desconforto íntimo dos membros da família contrasta radical e ironicamente com o conforto material em seu redor.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Toda a gente treme e chora, pai, mãe e filhos, há angústia de manhã à noite, transformando a estância de luxo num enorme amplificador deste psicodrama em família. A que o realizador dá contornos de comédia negra, quando a irmã mais nova de Ebba e o seu namorado chegam, são postos perante a situação, procuram, desajeitadamente, deitar água na fervura e racionalizar o acto cobarde de Tomas, e acabam por ser infectados pela cizânia. A espaços, Ostlund parece mesmo um discípulo “soft” de Bergman.

“Força Maior” (um termo legal que se refere a incidentes inevitáveis ou imprevisíveis) interroga o caráter imprevisível da natureza humana e expõe o lado negro, o flanco antissocial, do instinto de sobrevivência, numa altura em que o modelo e a solidez da família tradicional estão ameaçados e são postos em causa por todos os lados. Se quisermos, o filme pode ser visto como uma enorme metáfora, mas na realidade não precisa disso, porque funciona muito bem literalmente, graças ao rigor emocional e visual da realização de Ruben Estlund, sempre controlado na apresentação e descrição do descontrolo dos protagonistas, e às interpretações sem um passo melodramático ou histerizante em falso.

A resolução do filme fará sentido para alguns enquanto outros a acharão dececionante, e o incidente no autocarro com que Estlund fecha a narrativa soube-me a desnecessariamente reiterativo. Mas até lá, já “Força Maior” instalou um gelozinho de desconforto na plateia. Numa situação semelhante, seríamos um Tomas ou uma Ebba?