A convergência de complicações na União Europeia está a levar a soluções que em vez de resolverem, parecem acrescer problemas ao problema segundo afirma Anne-Marie Le Gloannec, diretora de investigação da Sciences Po — a principal faculdade francesa na área das ciências políticas. O acordo com a Turquia para os refugiados é difícil de entender quando o regime turco “não está a assegurar os direitos dos seus próprios cidadãos” e as consequências da decisão de Merkel de abrir as fronteiras da Alemanha, fizeram-na perder “o toque de Midas” para resolver os problemas em Bruxelas.

Esta investigadora francesa, que já ensinou em universidades como John Hopkins (Bolonha), Universidade de Estugarda e Universidade de Colónia, esteve em Portugal para as Conferências de Lisboa para participar no painel “A Encruzilhada Europeia”. Defende que a AfD, de extrema-direita, não vai crescer na Alemanha, projetando a possibilidade de um Governo entre os Verdes e a CDU de Merkel. Afirma também não estar preocupada com a Frente Nacional em França.

Na sua opinião, qual é o maior desafio da União Europeia neste momento?

O maior desafio é encarar vários desafios ao mesmo tempo. É talvez a primeira vez em que tantas crises se conjugam. Claro que que já tivemos outras crises. Lidámos com a euroesclerose ou o alargamento. Mas agora temos a crise económica, temos a crise na Ucrânia — que coloca a UE numa posição geoestratégica complicada –, o inferno na Síria, a crise dos refugiados e a possibilidade da saída do Reino Unido (apesar de eu não acreditar que isso vá acontecer). Mesmo que o Reino Unido fique, há cada vez mais vontades diferentes na União Europeia. O sistema de tomada de decisão é muito pesado porque envolve os 28 Estados-membros e há casos em que é preciso unanimidade. Todas estas crises se estão a afetar mutuamente e não há uma única medida para travar todos estes problemas. E há ainda a incerteza do futuro.

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Considera que algumas soluções, nomeadamente o acordo com a Turquia, estão a agravar os problemas em vez de os resolver?

Claro, não é possível termos uma solução perfeita. Cada Estado-membro fará várias reclamações diferentes na sequência do referendo do Reino Unido, independentemente do resultado da votação, e isso vai criar mais problemas com os polacos ou os dinamarqueses a pedirem novas exceções na esfera europeia. No caso dos refugiados, algumas soluções são muito más. Se olharmos de forma realista para o problema, será necessário ter as autoridades turcas a fazer um esforço por filtrar entre as pessoas que têm direito a asilo na União Europeia e os migrantes económicos, mas o regime turco está a desviar-se da democracia. Fazer um acordo sobre refugiados, que é um tema tão sensível e onde os direitos destas pessoas têm de ser protegidos ao máximo, com um regime que nem está a assegurar os direitos dos seus próprios cidadãos, faz-nos questionar o que se está a passar.

Quando se faz este tipo de acordo, a Europa não está a comprometer a sua posição como uma referência internacional em termos de valores ligados à liberdade e à democracia?

É um sinal externo terrível da União Europeia. É suposto a UE ser — e até certo ponto ainda é — um sítio em que os direitos dos cidadãos estão assegurados. Ninguém consegue fingir que a Turquia é um regime democrático e ao fazer um acordo com um governo não democrático é moralmente errado. Ao mesmo tempo, temos de fazer alguma coisa. Há tantos migrantes a virem para a Europa, que se trata de uma questão prática de encontrar alojamento e comida. A situação na Grécia não pode continuar com tantas pessoas com necessidades. Há muitas coisas que já se sabiam, nomeadamente que o número de refugiados estava a aumentar desde 2011. E esperou-se para agir até haver uma crise. Não é só um problema da União Europeia, afeta todos os Governos no mundo, como os Estados Unidos na Síria e a reação da Rússia. Mas claramente não fomos capazes de prever um acontecimento que sabíamos que ia acontecer.

Segue de forma muito próxima os desenvolvimento na política alemã. No ano passado, Angela Merkel tomou a decisão de abrir as suas fronteiras a cerca de um milhão de refugiados. Porquê?

Angela Merkel foi um pouco forçada a tomar essa decisão. Há uma instituição na Alemanha chamada Gabinete Federal para os Migrantes e Refugiados que começou a afrouxar os seus procedimentos desde o início de 2015 porque não tinha os recursos para controlar todas as entradas e deixou de fazer as entrevistas com os candidatos a pedido de asilo de nacionalidade síria, iraquiana e eritreia. Em agosto de 2015, disse que bastava aos refugiados dessas nacionalidades apresentarem os papéis que comprovavam a sua proveniência. O Governo alemão já tinha tomado algumas iniciativas, mas no início de setembro havia cada vez mais migrantes a chegar à Alemanha e a Hungria começou a colocar arame farpado nas suas fronteiras. Temos de nos lembrar que em maio de 1989, o último Governo comunista na Hungria cortou o arame farpado que separava o país da Áustria e que essa foi a razão pela qual muitos alemães de Leste conseguiram fugir e foi isto que deitou abaixo o muro. Se és alemã, e venho da Alemanha de Leste, como Merkel, és sensível a esta situação. Daí a frase “nós conseguimos”, que incentivava os refugiados a dirigirem-se à Alemanha. Antes disso, já se tinha espalhado que bastava apresentar os papéis para conseguir o asilo e todas aquelas pessoas se começaram a dirigir para a Alemanha.

As consequências dessas declarações não foram previstas pelo Governo alemão?

Ela pensou que ao mesmo tempo também estava a ajudar a Grécia e havia mobilização na sociedade alemã para acolher os refugiados. De alguma forma, Angela Merkel estava a tentar equilibrar a sua imagem.

Essa era uma das intenções de Merkel?

Havia muita coisa na cabeça dela. Havia o aspeto moral, a imagem, mas também o facto de os refugiados trazerem mais jovens para a Alemanha. Meses antes, ela tinha dito: “A Alemanha é um país de imigração”. Foi a primeira chanceler conservadora a dizer isto. É algo corajoso e também verdadeiro. O que ela não conseguiu perceber é que este movimento geraria tanta instabilidade nos países dos Balcãs, incluindo a própria Grécia. Ela pensou nos aspetos positivos, mas talvez por ter sido mal aconselhada não teve em conta todas as repercussões. Quando a Eslovénia e a Croácia abriram as fronteiras e se aperceberam que eram tantas pessoas e com tantas necessidades, isso criou problemas. Merkel deu uma voz aos alemães e aos europeus e isso foi ótimo — até porque seria estúpido não o ter feito. Não foi ela que criou este movimento migratório.

Essa decisão virou-se contra ela?

Claro. Ela era considerada como um género de dama de ferro, mas tinha o toque de Midas. E ela perdeu isso. Ela já não é vista como alguém que resolve problemas.

Outra consequência desta perda é a ascensão do partido AfD, de extrema-direita, que declarou ser contra a presença de muçulmanos na Alemanha. Como é que as decisões de Merkel estão a afetar a política interna?

Quando olhamos para os resultados das últimas eleições regionais, é claro que a AfD ganhou, mas os Verdes também ganharam em Baden-Württemberg. E têm apoio dos conservadores. Podemos ter um Governo conservador e verde em Berlim nas próximas eleições.

E dentro da CDU não há problemas com a CSU?

Não, não é do interesse deles. A Baviera foi estado que recebeu mais imigrantes e tem mais voluntários. Eu tenho amigos lá e eles fazem imenso trabalho pelos refugiados. Não conheço uma única família que não esteja a acolher refugiados.

E a popularidade de Merkel? Está comprometida?

Ela sofreu um pouco, mas agora a popularidade dela já voltou a aumentar. É difícil resolver toda esta situação e não há uma solução. Mas as pessoas compreendem o que se está a passar.

Falou na perda do toque de Midas de Merkel em Bruxelas. Isso faz com que outros Estados, talvez mais radicais, passem a ter uma palavra mais forte?

Acho que as decisões vão ficar cada vez mais difíceis no Conselho Europeu, mas no outro dia li um artigo no The Guardian e pensei: “Esta pessoa não sabe o que está a escrever”. E era sobre Matteo Renzi estar pronto para dominar o Conselho Europeu. A sério? Ele pode fazer algumas coisas, mas não vai tomar conta da situação. Não há substituto para a Alemanha. A Alemanha é o único país na Europa geograficamente central, com uma demografia importante e em termos económicos é essencial. O problema vai ser quem vai substituir Merkel à frente do Governo alemão.

Acha que Wolfgang Schäuble tem alguma hipótese?

Não, talvez há alguns anos. Atualmente não estou a ver ninguém, mas sei que alguém vai aparecer.

Os Governos na Polónia e na Hungria estão a ser contestados devido a decisões que desafiam a conceção de democracia da União Europeia. Está preocupada com estas situações?

Nem os polacos nem os húngaros vão fazer nada que vá de frente contra a UE porque parte significante do seu PIB vem de Bruxelas. Eles não vão sair, podem é tentar ter mais vantagens.

Está preocupada com as eleições em França para o ano?

Estava, mas já não estou. Tendo em conta o nosso sistema eleitoral, Marine Le Pen não vai conseguir eleger muitos deputados. Não conseguindo ter maioria, com quem vai governar? Não há nenhum partido que queira isso. Ela só o conseguirá se Hollande e Sarkozy insistirem em ser candidatos. 70% dos franceses não quer que eles voltem a candidatar-se e eles hão de se aperceber disso.