“Eu estava a beber café”

— O que é isto?

— Isto é outro passado.

— Outro? Mas há mais?

Ana Paula Cosme respira fundo. Talvez ainda seja cedo de mais para falar do pretérito imperfeito a pessoas que há um par de semanas não arranhavam o português, às vezes nem sequer o inglês. Para já, mais vale manter as coisas simples. Há presente e há passado. O futuro é tempo verbal para também aprender só mais à frente, porque grande parte destes alunos não concebe tal ideia. Nas chamadas línguas semíticas, faladas do Médio Oriente ao corno de África, o futuro não existe.

Desde o fim de fevereiro que o Centro de Acolhimento Temporário de Refugiados de Lisboa, no Lumiar, é o local onde as pessoas que deixaram o passado para trás vêm em busca de futuro. Já aqui chegaram 39 pessoas e quase todas ouviram as lições de português de Ana Paula Cosme, uma entusiástica voluntária do Serviço Jesuíta aos Refugiados. A primeira frase da conversa com o Observador? “Eu aqui só sou voluntária, mas isto é apaixonante!”

A maioria dos refugiados que tem chegado a Portugal vem da Síria e da Eritreia. Se a guerra civil síria tem tido ampla cobertura mediática, o que se passa no corno de África passa praticamente despercebido em Portugal. Todos os meses fogem cinco mil pessoas da Eritreia, um país com 4,5 milhões de habitantes onde uma brutal ditadura viola constantemente os direitos humanos. Para a professora Ana Paula, conviver com estes refugiados tem sido um privilégio. “Quando conhecemos as pessoas, apaixonamo-nos. Têm uma força interior incrível. Descobrimos que há muitos mundos para lá das nossas paredes.”

REFUGIADOS, PRESIDENTE DE CAMARA, Lisboa (distrito),

Inaugurado no fim de fevereiro, o Centro de Acolhimento Temporário de Refugiados é uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa com o apoio de diversas entidades que lidam com esta realidade (Fotografia: Manuel de Almeida/LUSA)

O pastor e o corretor da bolsa

As turmas de português de Ana Paula são tão heterogéneas como as origens de cada pessoa. Entre vários outros fatores, existe uma “enorme diversidade de escolaridade entre eles”, explica a professora. Como diz Nuno Jorge, coordenador da receção de refugiados neste centro, “passam aqui pessoas que trabalhavam na bolsa e pastores”. Durante esta conversa apareceu um grupo de homens, todos na casa dos vinte e tal anos, em que estavam lado a lado um estudante de geofísica e um pastor. Eram cinco e só um arranhava o inglês.

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“Essa ideia de que a generalidade dos refugiados fala inglês é errada”, diz Ana Paula, que ainda assim admite que tem de usar essa língua como “muleta” mais vezes do que estava à espera quando se lançou nestas aulas. “Às vezes não sei como é que faço”, ri-se. Mas lá vai tendo os seus truques. O recurso a imagens é fundamental, mas também se tornou indispensável criar fichas com a tradução de palavras portuguesas para tigrínio — a língua oficial da Eritreia. Só a preparação dessas fichas demorou um mês. De resto, o segredo é a simplicidade: a distinção entre o masculino e o feminino, os artigos definidos e indefinidos, alguns tempos verbais e pouco mais. É este o pacote básico que Ana Paula Cosme tenta ensinar.

Mas há um aspeto que, tanto ela como Nuno Jorge, não se cansam de enfatizar. Este ensino não é semelhante ao das escolas, nem sequer ao de adultos. “Não posso transformar um adulto, ainda que esteja numa situação muito frágil, numa criança. Ensinar a adultos não é a mesma coisa. Para mim tem sido quase sagrado, principalmente devido às pessoas que são”, afirma Ana Paula. Aliás, essa vontade de não infantilizar as pessoas só porque são estrangeiras e não falam português estende-se a outras vertentes da vida destes refugiados. “Aqui o princípio é a liberdade de escolha”, explica Nuno Jorge. Minutos antes, ouvimo-lo a recomendar ao grupo de cinco rapazes que carregue o passe social e que não gaste dinheiro em roupa (cada refugiado recebe 150 euros por mês). “Tanto o português como o passe ou outras necessidades… é tudo recomendações e não obrigações”, salienta o responsável.

Migrants in The Jungle in Calais

Muitos refugiados chegam à Europa com expectativas irrealistas e rapidamente têm de se adaptar à realidade (Fotografia: STEPHANIE LECOCQ/EPA)

Fazer vida de mudar a vida aos outros

Toda a vida de Ana Paula Cosme foi dedicada ao ensino. No ensino superior, na escola pública, na escola privada e, desde há uns anos, também voluntariamente. A experiência de voluntária começou no Bairro 6 de Maio, na Amadora, onde ainda vai pelo menos uma vez por semana ensinar português a imigrantes africanos e descendentes. São pessoas bem diferentes dos sírios e eritreus com que lida no Lumiar. Aqui, é preciso “criar uma relação empática” para poder ensinar. Aqui, Ana Paula sente que tem de ser “capaz de tocar num e abri-lo”.

Porque para lá do bê-á-bá do português está algo mais, está um abecedário sem o qual a vida é impossível. “O verdadeiro território do ensino de uma língua a um estrangeiro é o significado, a semântica. É difícil, mas eles estão extraordinariamente recetivos a isso. Alguns deles já estão a chegar aí”, explica a professora. É nesses momentos, ainda esparsos, que um ou outro lá faz um comentário sobre a guerra na Síria. Lamentam tantos anos de conflito, que o país esteja transformado numa manta de retalhos, que Bashar Al-Assad não saia do poder.

Tanto sírios como eritreus saem de casa em desespero e não sabem onde vão parar. Por isso, quando chegam, não sabem “quase nada de Portugal”, diz a professora Ana Paula. “Qual é a motivação para eu conhecer um país se não sei para onde vou?”, constata Nuno Jorge, que mais tarde prossegue a explicação. “Há sempre uma expectativa muito alta em relação à Europa. E tem de haver ajustamentos.” Muitas vezes, diz Ana Paula, “alguns estão a dar um pulo de um universo para outro”, pelo que a paciência, a desmistificação e “a plasticidade” têm de ser “imensas”, “a toda a hora”.

Por aqui, o futuro é construído dia-a-dia, passo a passo. Hoje com aulas, amanhã com grupos de conversação, depois com mais computadores. Mas o essencial continua a ser as pessoas, como Nuno e Ana Paula, que apesar de admitir que isto “é muito cansativo”, não têm vontade de mudar de vida. “Eu vou e todos os dias me continua a apetecer ir.”