A uma eventual aplicação de sanções a Portugal, o Bloco de Esquerda responde com um eventual referendo. À eventual “chantagem” de Bruxelas no processo negocial do Orçamento do Estado, o Bloco responde com outra chantagem: se há sanções, há referendo. Foi o que disse Catarina Martins no encerramento da Convenção do partido, este domingo, deixando no ar a dúvida sobre qual seria o objeto do referendo. À permanência na União Europeia, como fez o Reino Unido? Ao tratado orçamental? À moeda única? O Bloco não esclarece totalmente: “O conteúdo do referendo dependerá do conteúdo das sanções”, diz fonte do partido. Em todo o caso, qualquer que seja o objeto, o Bloco parece estar sozinho. Não só falta “vontade política” como crescem problemas jurídicos.

A ideia é precisamente não ir, para já, mais longe no discurso e esperar por 5 de julho, dia em que o colégio de comissários vai decidir sobre a punição a Portugal pelo incumprimento da meta do défice em 2015. O jornal francês Le Monde avança esta segunda-feira que a penalização vai mesmo acontecer, o que encurta a margem de manobra do BE. Havendo sanções, e se as sanções cortarem margem orçamental ao Governo para poder aplicar a política social e de recuperação de rendimentos que mantém a geringonça unida, então o BE terá mesmo de cumprir o prometido. É que se isso acontecer, se Bruxelas pressionar na elaboração do OE 2017, o BE acredita que o Governo ou cede ou resiste a Bruxelas. Se ceder, perde a maioria que o suporta internamente; se resistir, os bloquistas acreditam que o caminho só pode ser o do referendo.

Mas faltam pernas para a proposta andar — e abundam os problemas.

O problema político

“Para haver referendo é preciso haver a conjugação de duas vontades, a vontade do Parlamento e a vontade do Presidente”, diz ao Observador o constitucionalista Bacelar Gouveia, elegendo a “falta de vontade política” como o primeiro obstáculo à realização de um referendo sobre a União Europeia. Certo é que tanto Marcelo Rebelo de Sousa como o Governo já se pronunciaram sobre o tema: não é altura para referendos deste género, com as ondas do Brexit a ecoarem e o risco de desintegração da UE a crescer.

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Nem tão pouco os partidos, da direita à esquerda, alinham na ideia. Ao Observador, o deputado socialista responsável pelos assuntos europeus Vitalino Canas não tem dúvidas de que a questão que se coloca no imediato, quando ainda não se conhece mais do que a intenção do BE, “é mais de natureza política” do que jurídica. “Um referendo sobre questões europeias agora é tudo menos um referendo sobre questões europeias”, disse ao Observador o ex-eurodeputado.

O Brexit tornou o tema delicado — coisa que os bloquistas sabem, daí terem aproveitado o timing para ressuscitar uma questão antiga — e mostrou, segundo o deputado socialista, que um referendo deste género, nesta fase, acaba por ser mais “sobre medo, receios, riscos, guerras e não sobre as vantagens e a avaliação do projeto europeu — é inaceitável”. E a isto ainda se soma “um exemplo um bocadinho traumático”, nas palavras do socialista, que lembra o referendo grego que, há um ano, rejeitou as políticas europeias, sem sucesso. Já no Bloco de Esquerda, o timing é antes visto como uma vantagem, já que nesta fase de quase “desintegração” do projeto europeu referendar a permanência, o euro ou o tratado orçamental tem praticamente o mesmo impacto político.

Do lado socialista, de resto, foi muita a surpresa e foram muitas as vozes críticas que se levantaram. O eurodeputado Francisco Assis, mais crítico da “geringonça”, disse mesmo ao Expresso que o referendo proposto pelo BE é “um número de circo político”, um “carnaval de pura demagogia”, e que o tom que se ouviu na Convenção bloquista sobre a Europa foi “virulento”. O mesmo jornal avança que o BE não informou os parceiros da esquerda de que iria fazer aquele anúncio.

Além de que nem sequer o PCP defende a ideia. No rescaldo da ameaça de Catarina Martins, Jerónimo de Sousa reafirmou que a posição dos comunistas é que Portugal deve estar “preparado para se libertar da submissão do euro”, mas que isso é “um processo” gradual e não deve ser um “ato súbito”, como seria caso a decisão fosse tomada em referendo.

Em todo o caso, a decisão política cabe à Assembleia da República e depois ao Presidente, sendo que é ele quem, segundo se lê na definição dos poderes presidenciais, deve “decidir sobre a convocação ou não dos referendos nacionais que a Assembleia da República ou o Governo lhe proponham”. Mas mesmo que Marcelo até concordasse com a ideia, a lei dita que é obrigatório o Presidente pedir a fiscalização preventiva do referendo ao Tribunal Constitucional — e é precisamente aí que entra o problema jurídico.

O problema jurídico

Na hipótese de a proposta avançar, o mais certo é esbarrar no Tribunal Constitucional. Ao Observador, o constitucionalista Paulo Otero diz não ter dúvidas de que, qualquer que seja o seu objeto, o referendo é, nesta fase, inconstitucional. É que não está em causa a aprovação ou a vinculação de Portugal a novos tratados, “tanto o Tratado de Lisboa como o Tratado Orçamental já estão ratificados”, diz. Logo, o problema começa por ser de “oportunidade”, afirma, sublinhando que o artigo 295.º, que foi introduzido na última alteração constitucional de 2005, e que possibilita a convocação de referendos sobre tratados europeus, devia ter sido invocado no momento certo (antes da ratificação dos tratados), não agora. Agora já é tarde, diz.

Isto vale para a hipótese de uma consulta popular à permanência na UE, como fez o Reino Unido, como vale para uma consulta popular ao Tratado Orçamental. Aqui, o constitucionalista diz que acresce um “problema de matéria”. Em causa está o artigo 115, número 4, que diz que “não podem ser objeto de referendo as questões e os atos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro”. Logo, um referendo ao Tratado Orçamental, que também já está ratificado, e que diz respeito a matéria orçamental, fica fora de questão.

Posição semelhante tem Rui Tavares, dirigente do Livre, que acredita que o que está em cima da mesa do BE — até por uma questão histórica — é um referendo ao Tratado Orçamental, coisa que os bloquistas defendem desde que o Tratado começou a ser debatido e posto a ratificação. E, neste caso, o antigo eurodeputado eleito pelo BE (e que entretanto rompeu com o partido) defende ao Observador existirem três problemas em relação a um referendo. O primeiro é que, apesar de a Constituição ter sido alterada para permitir referendar tratados europeus, “o Tratado Orçamental é um tratado internacional normal e não um tratado europeu”.

Em segundo lugar, argumenta, o tratado é sobre matéria orçamental, lembrando o artigo 115. E, por último, “o Tratado já foi ratificado”, diz, reiterando a tese de muitos constitucionalistas. O Bloco, diz, “podia votar a desvinculação de Portugal do Tratado”. “Quem é tão contra, é este caminho que deve propor e não um caminho que sabe ser constitucionalmente impossível”, diz.

Opinião diferente tem o constitucionalista Bacelar Gouveia, que, ao Observador, diz ter dúvidas sobre essa suposta inconstitucionalidade. “Embora o tratado comunitário seja um tratado orçamental, a minha leitura é de que a Constituição refere-se nesse ponto apenas a questões orçamentais internas”, diz. Ou seja, um referendo ao tratado orçamental estaria, na sua opinião, conforme a lei.

O próprio Marcelo Rebelo de Sousa, contudo, concorda com a tese de inconstitucionalidade. Em 2014, quando o Bloco de Esquerda avançou com a possibilidade de chamar os portugueses a pronunciarem-se sobre o Tratado Orçamental, o comentador Marcelo foi perentório. “Não é possível referendar matérias com implicações orçamentais e fiscais”, disse na altura ao jornal i. Como já se percebeu, portanto, existe ainda um problema chamado Marcelo, presidente.

O problema “Marcelo”

Mesmo que, chegados a este ponto, não fossem levantados quaisquer problemas sobre um referendo europeu, ficou logo a saber-se no próprio domingo em que nasceu a ameaça do Bloco que há um muro em Belém. E, nesta matéria, esse muro pode revelar-se intransponível, já que a convocação de um referendo cabe sempre ao Presidente.

Marcelo Rebelo de Sousa foi absolutamente claro: “Portugal está na União Europeia, sente-se bem na União Europeia e quer continuar na União Europeia. Quanto ao resto, a Constituição diz que a decisão sobre o referendo é do Presidente da República e, portanto, é uma questão que não se põe neste momento”. Traduzindo: o chefe de Estado não quer um referendo, logo, não há referendo.

E se alguém pressionar, obrigando o Presidente a chumbar a proposta, ela já não poderá ser renovada nessa sessão legislativa (já aconteceu, em 2005, com o referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez). Este é um poder decisivo do Presidente da República, ganho na revisão constitucional de 1989, quando foi introduzida a possibilidade do referendo na Constituição.