Jogar à bola é, na escola, o dono da bola chamar os amigos, decidir quem se pode juntar e por toda a gente a jogar aos centros. Ou aos apurados. Um fica encostado ao canto, está ali para cruzar, cruzar e cruzar, chutar a bola para a área, onde os outros rematam para serem felizes contra o infeliz que fica a guardar a baliza. O último é eliminado e assim se vai até sobrarem dois. Também se pode jogar à bola só com dois, a revezarem-se nas fintas, um a tentar driblar o outro, duelo onde a cueca é rainha. Jogar à bola, dantes, também era não ter que combinar nada e apenas aparecer, à tarde, na rua, onde os amigos sabiam que uma bola e quatro pedras chegavam.

Tudo o que é a brincar, jogar com um sorriso na cara, uma malandrice na ponta do pé, pensar que não vale se não for bonito de se ver, é jogar à bola. Fernando Santos não gosta nada disto, mesmo que o adepto anseie por coisas que o deixem boquiaberto. Mas se há coisa que não acontece na rua, no pátio, no campo da escola, no pelado no meio do nada, na praia, com pedras ou bolas de farrapos, é começar um jogo a perder.

Foi isso que aconteceu a Portugal.

Ainda era a fase dos ressaltos, passes pelo ar, muito corpo a corpo e pouca bola no pé, da precipitação a fazer as coisas. Até que Piszczek, na direita, arrisca um passe pelo ar, bem longo, para tentar levar a bola a Grosicki, na esquerda. Pelo meio Cédric partiu na aventura do achar que o passe não era tão longo quanto isso, deu três passos à frente, deixou o polaco nas costas, a bola bateu-lhe à frente e passou-lhe por cima. Erro de casting. O extremo foi rápido a fugir para a baliza, William lento a dar mais um jogador à área, José Fonte inativo a lidar com Lewandowski. E o avançado ficou com espaço para rematar de primeira, perto da marca de penálti. Aos 100 segundos a seleção perde com um golo de quem não marcava pela Polónia desde novembro.

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E continua, durante muito tempo, a defender como quem joga à bola. Os portugueses perdem-se, são molengões, não recuam quando um passe faz o jogo ir para trás deles. Parecem ratos a caírem na ratoeira de uma tabela ou de um passe longo. Resultam sempre, como o 3-5-2 que a Polónia monta para jogar com a bola na relva desde a própria área. O trinco Krychowiak inventa uma sandwich entre os centrais, organiza ali as coisas, Ronaldo, Nani e Renato pressionam sem cabeça, a bola sai sempre para as alas. William não ajuda os laterais, chega atrasado a todo o lado, Pepe e José Fonte respeitam demasiado o avançado que lhes marcou um golo e não faz outro (17’) por acaso. Não encostam, largam-no, deixam-no receber bolas, assim não, parece o recreio em que só há duelos se os jogadores estiverem frente-a-frente.

Milik e Lewandowski, os malandros, tocavam e iam entre eles, punham-se em linha para os polacos atirarem passes rasteiros para a área e um abrir as pernas para soltar o outro. Portugal defende, mas mal, como galinhas sem cabeça que correm ao acaso quando querem pressionar. A atacar não. Com bola a seleção mantém a calma, aprende com os passes que erra muito logo a seguir ao golo, mostra atitude, tenta muitas tabelas e consegue ter Renato em jogo. Ou ele consegue atrair jogadas. Pede, recebe, toca rápido, não complica enquanto Ronaldo sai muito da área e Nani se estica para conseguir receber a bola. A atacar, a seleção não joga à bola, joga futebol.

Portugal's midfielder Renato Sanches (L) vies with Poland's forward Arkadiusz Milik during the Euro 2016 quarter-final football match between Poland and Portugal at the Stade Velodrome in Marseille on June 30, 2016. / AFP / Francisco LEONG (Photo credit should read FRANCISCO LEONG/AFP/Getty Images)

Foto: FRANCISCO LEONG/AFP/Getty Images

Faz coisas a pensar e com uma estratégia que faz jogadores trocarem de posições, arrastarem adversários, libertarem-se uns aos outros. É o que faz o calcanhar de Nani, que tabela com Renato Sanches para libertar o miúdo à porta da área. Ele dá um pontapé de rompante e a bola que ainda bate nas costas de Krychowiak entra junto ao poste esquerdo. É o golo mais novo de sempre em fases a eliminar do Europeu (ele ainda só tem 18 anos e 317 dias entre nós) e o empate perdura. A distância tira pontaria a um remate de Milik e a pressa rouba força a um pontapé rasteiro e frouxo de Ronaldo. A que teve Pazdan para o empurrar nas costas, a que o árbitro não dedicou a um sopro no apito.

Chega de jogar à bola. O 4-3-3 que a seleção arrisca antes é o 4-4-2 prudente de agora. A equipa tenta controlar os polacos como se precaveu contra os croatas, com calma, paciência, mais perto da linha do meio campo, Nani e Ronaldo a ameaçarem pressão e Adrien a cair em cima, caso algum médio peça a bola por ali. O adversário encrava, a estratégia compensa, a seleção defende a jogar futebol. Com cabeça. Os médios aproximaram-se, João Mário chegou-se à frente, Renato ficou sempre mais perto das linhas, caçador do espaço que o deixasse embalar. Como Ronaldo, que não levantou a cabeça à esquerda da área, quando rematou à rede lateral (56’) o passe de Nani e não viu João Mário à espera de outro.

Já não se vê alguém a tentar jogar à bola. Os polacos fecham-se mais do que arriscam, esperam por contra-ataque por oportunidades para Milik fugir da área uns dois metros e aproveitar o William que se mantém colado aos centrais. A seleção tem menos a bola, não faz tantos passes como os polacos, nem tem o jogo passivo deles. Só quando Renato defende a jogar à bola e mostra o que será o problema mais evidente de ainda ser miúdo — esquece-se do adversário que tem à frente quando ele solta a bola — é que Jedrzejczyk cruza à esquerda, Lewandowski desvia e Rui Patrício vai à relva para a intrusa polaca. O resto é ver Portugal a chegar bem aos últimos 30 metros do campo, mas a ver apenas Cédric a disparar um balázio à distância e Ronaldo a falhar na bola que Moutinho pica com classe para as costas dos centrais.

A bola corre cada vez mais devagar com os minutos que passam. Nem com ela a começar parada, à espera do canto de João Mário e o livre para a área de Quaresma, entra na baliza pelas cabeças de José Fonte e Pepe. O chip do jogador de futebol, o que ganha jogos e os equilibra, dá o quinto empate a Portugal em cinco jogos que faz até aos 90 minutos. É o segundo prolongamento seguido. Não é como os miúdos que esticam o recreio para lá do toque e levam nas orelhas pelo atraso. É mais para aumentar a canseira nas pernas, a que talvez faz Ronaldo falhar na bola que Eliseu lhe cruza (92’), enganado também pelo triz que falta a Nani para a cabecear.

Os polacos calmos se mantiveram, a acelerarem com a parcimónia que apenas lhes libertou Milik, para o avançado que tem ar de craque disparar uma bomba com o pé esquerdo (que saiu pouco ao lado do poste). E que deixou Piszczek acelerar, fixar Danilo e Eliseu, e libertar Lewandowski no buraco aberto, que inventou um cruzamento rasteiro que foi um “ver se te avias” que passou entre Rui Patrício e toda a gente que estava na área. E o jogo de futebol tornou-se mais futebolesco ainda. Foi abrandando e acalmando, a cautela cada vez mais alérgica ao risco. O cansaço tomou de vez conta de Ronaldo e Nani, que muito correrem para anular as saídas de bola polacas. Quaresma não tinha espaço nem tempo para o um para um, chegava sempre outro alguém perto. Pepe foi-se agigantando atrás, valendo por dois ou três que cortavam tudo.

O que mais espicaçou foi algo que só podia ver-se num jogo de futebol. Uma invasão de campo ao sprint, a valer mais de uma dezena de perseguidores, que apenas conseguiram placar o invasor de campo quando Ronaldo já se tinha esquivado dele como um toureiro manobra um touro enraivecido. Após o intervalo nada mais de emotivo se passou e os penáltis chegaram.

Aqui nada tem a ver com jogar à bola.

Não houve cá remates só a quererem ir ao ângulo, risos, paradinhas, picanços com guarda-redes, remates inventados e a darem torto. Não. Houve um capitão a chegar-se à frente, a assumir, a dar o exemplo em primeiro e não a guardar-se para último, para o pontapé que pode dar a glória, como sempre o faz no Real Madrid e fez há quatro anos, contra a Espanha. Quando os penáltis não chegaram a ele. Aqui ele marcou e viu Renato, Moutinho e Nani acertarem depois, enquanto cerrava os punhos, festejava, berrava a cada bola que entrava, um metro afastado do cordel da equipa a meio campo. E foi o primeiro a ir celebrar com os adeptos, assim que Quaresma castigou Blaszczykowski por falhar e permitir que Rui Patrício defendesse. Tudo como deve ser, tudo sério, nada de brincadeiras, o melhor a mostrar o caminho, o capitão a tentar tirar pressão dos outros.

E isto, amigos, isto é jogar futebol. A jogar à bola não se chega pela quarta vez às meias-finais de um Europeu, já dizia Fernando Santos.

MARSEILLE, FRANCE - JUNE 30: Cristiano Ronaldo of Portugal kisses the ball at the penalty shootout during the UEFA EURO 2016 quarter final match between Poland and Portugal at Stade Velodrome on June 30, 2016 in Marseille, France. (Photo by Laurence Griffiths/Getty Images)

Foto: Laurence Griffiths/Getty Images