Não declarou uma, mas duas licenciaturas falsas. O ministro da Educação saberia de tudo — segundo acusa o antigo secretário de Estado –, mas manteve-o. Nuno Félix, chefe de gabinete do secretário de Estado da Juventude e do Desporto, declarou para efeitos do despacho de nomeação publicado em Diário da República que era “licenciado” e que tinha dois cursos superiores: um em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e outro em Direito na Universidade Autónoma de Lisboa. Ambas as universidades negaram que o antigo aluno tivesse acabado os cursos. Após o contacto do Observador com estas perguntas, esta sexta-feira, surgiu a decisão oficial: Nuno Félix demitiu-se.

Foi o próprio ministério da Educação que, na resposta às questões do Observador, deu conta da saída do chefe de gabinete do secretário de Estado da Juventude e do Desporto:

O Ministro da Educação foi hoje informado da decisão do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, que aceitou o pedido de demissão do seu Chefe do Gabinete.”

Em resposta “pessoal” ao Observador, Nuno Félix afirmou: “Nunca disse para nenhuma das funções que exerci que era licenciado. Mas sim, que tinha a frequência do ensino superior. Importa dizer que o meu percurso académico sempre foi público, até pelas funções que desempenhei enquanto estudante como dirigente estudantil e juvenil”. Não foi o que aconteceu, como prova um despacho publicado em Diário da República em fevereiro (ver abaixo).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A situação não surpreende quem assinou o despacho. João Wengorovius Meneses, o anterior secretário de Estado da Juventude, confirma ao Observador ter sido este um dos motivos da sua polémica demissão. O antigo governante sustenta que o ministro tinha conhecimento da situação. Wengorovius quis, aliás, exonerar Nuno Félix por este e outros motivos, mas Tiago Brandão Rodrigues não deixou. O ministro preferiu deixar cair o governante (em meados de abril) e manter o seu amigo Nuno Félix. Fonte oficial do ministério nega, no entanto, que seja uma amizade de longa data, como o Observador apurou inicialmente, e também nega que o ministro saberia de erros no despacho. Na mesma linha, fonte oficial do ministério recusa a tese de Wengorovius de que o ministro segurou o chefe de gabinete em vez do secretário de Estado.

No despacho de nomeação, de 5 de janeiro e publicado a 4 de fevereiro de 2016, Nuno Félix apresentava-se como licenciado e incluía como formação académica na nota curricular o “curso de licenciatura em Ciências da Comunicação na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa” e o “curso de Licenciatura em Direito na Universidade Autónoma de Lisboa.” Mas as universidades são claras: Nuno Félix foi aluno em ambos os casos, mas não concluiu qualquer curso. E mais: num deles, só esteve um ano letivo.

A Universidade Nova de Lisboa explicou ao Observador: “Relativamente à solicitação efetuada, informo que Nuno Miguel de Aguiar Félix esteve, de facto, inscrito no curso de licenciatura de ciências da comunicação da FCSH/NOVA, no ano letivo 2008/2009, mas não o concluiu.

Também a Universidade Autónoma de Lisboa negou igualmente ao Observador que Nuno Félix fosse licenciado em Direito por aquela instituição: “[A UAL] informa que o senhor Nuno Miguel de Aguiar Félix frequentou o curso de Direito entre os anos 1995 e 1997 não tendo concluído a licenciatura.Em Diário da República foi declarado o contrário, como se pode ver por esta reprodução do despacho.

felix_despacho_dois

Despacho publicado em Diário da República, 2.ª série, n.º 24, 4 de fevereiro de 2016.

O caso ainda não era do conhecimento público, mas há muito que era um assunto interno nos gabinetes do ministério. Questionado pelo Observador sobre se sabia desta situação, o secretário de Estado que fez a nomeação (por sugestão do ministro da Educação) é taxativo e conta que só soube da situação meses depois de começar a trabalhar com Nuno Félix. E pela jurista do gabinete.

Confirmo que soube pela jurista do gabinete que ele tinha declarado ser licenciado sem ter terminado pelo menos uma das duas licenciaturas e sei que o fez deliberadamente e não por lapso”, diz ao Observador João Wengorovius Meneses.

Ao aperceber-se desta situação — e de outras que considerou igualmente graves — o anterior secretário de Estado comunicou ao ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, que pretendia exonerar Nuno Félix de chefe de gabinete e propôs nomear uma nova chefe de gabinete. O ministro impediu, no entanto, Wengorovius de exonerar Nuno Félix, transmitindo essa ordem por e-mail. Foi a gota de água. Nuno Félix já tinha sido imposto a João Wengorovius Meneses sob o pretexto de ser a ligação entre secretário de Estado e ministro, mas o governante que se demitiu em abril nunca considerou que o chefe de gabinete que lhe foi sugerido se destacasse pela competência. Wengorovius fez uma espécie de “ou ele ou eu”. O ministro optou por segurar o chefe de gabinete e deixar cair o secretário de Estado. A 13 de abril Wengorovius demitia-se em semi-silêncio.

Prezo muito a dignidade do Estado, do Governo e do exercício deste tipo de funções, bem como a estabilidade política, que tanta falta nos faz neste momento, de modo que não farei mais qualquer comentário”, disse então em declarações ao Observador

Desta vez foi mais longe e admitiu as razões da sua inquietação, que em abril o levaram a dizer que saía “em profundo desacordo com o senhor ministro da Educação no que diz respeito à política para a juventude e o desporto, e ao modo de estar no exercício de cargos públicos“. Apesar de todo este desconforto que durou meses, Nuno Félix nunca corrigiu o despacho que continha informações falsas (tinha hipótese de o fazer com uma retificação em Diário da República).

Ao Observador, Nuno Félix tenta justificar o porquê do mesmo nunca ter acontecido. O antigo chefe de gabinete explica que entre as “numerosas obrigações” competia-lhe “também controlar a qualidade das publicações em Diário da República, coisa que fiz aquando da publicação da minha própria nomeação.” O chefe de gabinete demissionário continua:”Tendo detetado um erro na mesma promovi junto de uma adjunta (jurista) do Gabinete do SEJD, à época do mandato do Dr. João Meneses, a execução de uma proposta de retificação à dita publicação.” Mas aqui, Nuno Félix coloca o ónus em terceiros: “Foi então entendimento que, por já terem passado 60 dias sobre a produção de efeitos do despacho, esta alteração seguiria fora de prazo legal e, como tal, não foi enviada naquele momento proposta de alteração da publicação.” Não é esta, naturalmente, a versão de Wengorovius Meneses.

Certo é que a saída de Wengorovius tinha sido polémica e a probabilidade das informações passarem a ser do conhecimento público eram elevadas. Assim, no novo despacho de nomeação (já assinado pelo novo secretário de Estado, João Paulo Rebelo, a 23 de maio e publicado em junho), as referências à conclusão da licenciatura foram apagadas e corrigidas. Afinal, tinha apenas a frequência dos cursos. Mesmo assim, as informações falsas subsistiram vários meses, sem que ninguém (fora do gabinete) desse conta.

paint

Despacho de nomeação publicado em junho de 2016

O ministério emitiu ao final da noite uma nota, em que o ministro da Educação “desmente que tenha tido conhecimento de que havia uma incorreção no despacho de nomeação assinado pelo antigo Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Meneses, relativamente ao seu Chefe do Gabinete.” O ministro garante ainda que “a referida incorreção relativa ao percurso académico de Nuno Félix só agora chega ao conhecimento do ministro da Educação, num momento em que a mesma já estava conforme“. O ministério acrescenta ainda que “o ex-secretário de Estado não saiu devido a questões relacionadas com o seu chefe do Gabinete, inclusivamente a incorreção do seu despacho de nomeação” e que “a constituição das equipas é da exclusiva responsabilidade de quem tem a sua tutela direta.

No final de 2012, recorde-se, houve um problema de licenciaturas no anterior governo e o ministro da Educação e do Ensino Superior, Nuno Crato, mandou investigar o “número dois” do Governo e ministro adjunto, Miguel Relvas. Passos deu autorização, Crato abriu um inquérito e Relvas acabou por cair. Nos últimos anos têm existido diversos casos de licenciaturas de políticos cuja credibilidade foi colocada em causa. Os casos mais mediáticos foram os do antigo primeiro-ministro José Sócrates e do antigo ministro Miguel Relvas. Também no início desta semana o Observador revelou um caso de licenciatura falsa, desta vez de um adjunto do primeiro-ministro, Rui Roque. No mesmo dia, o adjunto demitiu-se.

Motorista fazia 400 quilómetros por dia?

Outro dos desconfortos que Nuno Félix provocava no gabinete era o facto de o motorista do ministério ter de ir buscar, pela manhã, e ir levar, à noite, o chefe de gabinete a casa — em S. Martinho do Porto. Ao todo, são 400 quilómetros que o motorista tem de fazer, diariamente, a mais. Há muito que o assunto é comentado no gabinete, mas é agora confirmado ao Observador pelo anterior secretário de Estado:

Se me pergunta, é absolutamente verdade que o motorista do gabinete ia no carro de serviço buscar de manhã e levar à noite Nuno Félix a São Martinho do Porto todos os dias, pelo menos enquanto fui secretário de Estado isso aconteceu todos os dias.”

Mas há outras questões que levantam problemas de incompatibilidade e que também foram atempadamente comunicadas por João Wengorovius Meneses ao ministro Tiago Brandão Rodrigues: a ligação de Nuno Félix a um clube de futebol alemão e a uma associação de refugiados.

O olheiro do Colónia FC

Nuno Félix era (e de acordo com o Linkedin pessoal ainda é) olheiro (“international scouting“) do Colónia FC ao mesmo tempo que é chefe de gabinete da secretaria de Estado do Desporto. João Wengorovius Meneses considerava que isto configurava uma incompatibilidade e disse-o ao ministro.

Embora não houvesse provas de que a atividade continuasse, no gabinete soube-se que, em dezembro de 2015 (quando já era chefe de gabinete há um mês), Nuno Félix foi à Alemanha, no âmbito de contactos com clubes alemães. Na rede social Linkedin, acedida nesta sexta-feira pelo Observador, o chefe de gabinete continua a aparecer como olheiro internacional do Colónia FC, um clube da primeira divisão alemã, a Bundesliga, cargo que ocupa desde julho de 2013.

linkedin

Linkedin de Nuno Félix

Ainda há cerca de um mês, na sua página do Facebook, Nuno Félix partilhava selfies tiradas junto aos estádios do Borussia de Dortmund e também do próprio Colónia FC.

felix

Fotos partilhadas na página de Facebook de Nuno Félix em setembro de 2016.

Mais uma vez, o ex-secretário de Estado confirma a veracidade desta situação: “Posso confirmar-lhe que ele trabalhou como olheiro para um clube alemão e que já como chefe de gabinete viajou até à Alemanha em dezembro para se encontrar com o clube”.

Mas há ainda mais um fator que pode configurar incompatibilidade: uma organização de refugiados, Famílias Como as Nossas, da qual Nuno Félix é o principal rosto. O que pode estar em causa é o facto de a secretaria de Estado poder, em diversos momentos, ter que se relacionar com stakeholders desta área, podendo configurar uma situação de incompatibilidade. Antes de integrar o Governo (e até antes das legislativas), Nuno Félix foi notícia em outubro de 2015 por ter aproveitado um fim-de-semana para ir à Áustria resgatar uma família de refugiados sírios.

Quem é Nuno Félix? Recebeu quase 100 mil euros do Governo Sócrates

Nuno Félix tem 39 anos, sendo meio ano mais velho que o amigo Tiago Brandão Rodrigues. Foi, como o próprio declara no polémico despacho, consultor para a Comunicação Social na Presidência do Conselho de Ministros e assessor de imprensa no gabinete do ministro dos Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão. O Correio da Manhã chegou a noticiar: “Boy ganha 4080 euros“. O “boy” era Nuno Félix e em causa estava uma avença atribuída por ajuste direto, com um valor total de 49.076,16 euros, num contrato com a duração de 290 dias (9 meses e 16 dias). Em março de 2011, Nuno Félix beneficiou de novo ajuste direto feito pela secretaria-geral da Presidência do Conselho de Ministros, com duração de um ano, desta vez para realizar “consultadoria técnica – serviços de comunicação, gestão e estratégia de comunicação e desenvolvimento e produção de conteúdos”, com um valor global de 49.200 euros. Na altura, ao CM, Nuno Félix negou ser um boy e assumiu-se como “militante de base”. Foi também candidato pelo PS à assembleia da junta de freguesia do Lumiar.

Na sua nota curricular, Nuno Félix diz ainda ter sido sócio-gerente da empresa Find-it Portugal, Lda (agosto de 2006 – outubro de 2009) e gestor de projetos no grupo editorial Cofina e no grupo editorial JAS Farma (revista médica), bem como diretor de publicidade no Grupo Mediacapital Edições Económicas.

Nuno Félix foi também sócio-gerente da empresa Rakatak – Expedições e Aventura (janeiro de 2008 a outubro de 2009) e da Academia da Edição, Monteiro Coelho e Félix, Lda (entre 2002 e 2005). A nível académico e associativo, Nuno Félix foi vice-presidente do Conselho Nacional de Juventude, de março de 2001 a outubro de 2003, bem como presidente da Associação Académica de Lisboa entre janeiro de 1999 e janeiro de 2000.

Nuno Félix terá também chegado a escrever no blogue Câmara Corporativa, que recentemente foi notícia por o seu principal autor António Peixoto (que assinava como Miguel Abrantes) ter sido alegadamente pago por José Sócrates por intermédio de Rui Mão de Ferro. No Facebook, em resposta ao social-democrata José Eduardo Martins, Nuno Félix saiu em defesa de Peixoto: “Não tirem conclusões precipitadas, eu escrevi muito pouco no Câmara Corporativa, mas conheço quem tenha escrito lá durante anos e posso garantir que nenhuma dessas pessoas alguma vez recebeu o que quer que fosse apenas e só dar a sua opinião.”

Atualizado às 18h40 com esclarecimentos complementares fornecidos pelo ministério já após a divulgação da versão inicial da notícia.