A 22ª emenda da Constituição dos EUA está bem estudada nesta barbearia do bairro nova-iorquino do Harlem, maioritariamente afro-americano. Aprovada em 1947, aquela alínea traça um limite claro ao Presidente dos EUA: não pode sê-lo durante mais do que dois mandatos, cada um de quatro anos. E é por aí que se responde na Fresh Looks quando perguntamos pelo fim do primeiro Presidente negro dos EUA. “Já está na hora dele, não podemos mudar a Constituição, não é?”, diz Ruben Herrero, negro de ascendência dominicana, em jeito de pergunta retórica, enquanto usa uma navalha para cortar o cabelo a um cliente.

Ruben tem 22 anos e nunca votou. Nas primeiras eleições de Barack Obama, em 2008, tinha apenas 14 anos. “Mas se pudesse, tinha votado nele”, garante. Em 2012 já podia tê-lo feito, mas não se registou para votar e, por isso ficou em casa nesse dia. Ainda assim, e mesmo ressalvando várias vezes com “eu não gosto muito de política”, Ruben diz que já está com saudades. “Tenho pena de vê-lo partir, até porque agora vamos ficar com duas opções bem piores”, diz. Fala, claro, de Hillary Clinton e de Donald Trump. Ela, “uma mulher que anda desesperada por subir ao poder há décadas”; ele, “um racista cobarde”.

“Nenhum deles vai ser como o Barack”, garante Ruben, que faz sempre questão de se referir ao 44º Presidente dos EUA pelo primeiro nome. “O Barack era mais pelo povo, veio de baixo e foi até ao topo, por isso sabia reconhecer as lutas das pessoas que estão por aí”, diz. “Ele não nasceu Presidente, fez-se. Os outros dois já andam nos círculos de poder há demasiado tempo.” Feitas as contas, Ruben ainda nem era nascido.

“Fomos todos muito ingénuos”

São 18h30 em Nova Iorque mas, a julgar pelo céu totalmente escuro, bem podia ser meia-noite. É domingo e a Fresh Looks tem pouca gente. A maioria dos clientes são os filhos de um homem afro-americano (primeiro recusa dar o nome, depois inventa e diz que se chama Derrick Noah, juntando os nomes de Derrick Rose e Joakim Noah, basquebolistas do Chicago Bulls) que, sobre Obama e a sua saída do poder, também evoca a 22ª emenda. “Oito anos, meu… Se não dá mais, então não dá.”

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A barbearia Fresh Looks fica na zona norte do Harlem, bairro maioritariamente afro-americano de Nova Iorque

Ao lado, Fischer Nesbitt ouve as palavras de “Derrick Noah” enquanto corta o cabelo a um dos seus filhos, de oito anos. “Foram oito anos mas ele não fez népia”, diz este barbeiro de 38 anos. Está há 20 nesta profissão, parando apenas nos anos em que frequentou, sem terminar, uma licenciatura em História na University of South Carolina. Fischer votou em Obama em 2008 com um entusiasmo que não rima com o ceticismo que hoje apresenta. “Eu tenho antepassados que passaram pela escravatura, por isso fiquei completamente louco por ver um negro a concorrer à Casa Branca”, recorda. “Mas demorei pouco tempo a cair em mim e para perceber que quem manda no país e no mundo são os homens brancos, independentemente de quem é o Presidente.”

No dia em que entregar a pasta ao próximo inquilino da Casa Branca, a 21 de janeiro de de 2017, Obama vai contar oito anos no poder. Porém, apenas os dois primeiros foram passados com apoio do Congresso — e, no resto do tempo, teve de lidar com os congressistas do Partido Republicano, que muitas vezes bloquearam as suas aspirações políticas, cortando-as pela raiz ou protelando-as indefinidamente. São estes os “homens brancos” a que se refere Fischer. “Nós fomos todos muito ingénuos por termos pensado que eles iam deixar um homem negro fazer o que lhe apetecesse”, diz.

Os “males” da candidata que é o “mal menor”

Em setembro deste ano, Obama fez um discurso onde se dirigiu aos eleitores afro-americanos, fazendo-lhes praticamente um ultimato. “Depois de termos conseguido taxas de participação eleitoral históricas em 2008 e em 2012, especialmente na comunidade afro-americana, eu vou tomar como um insulto pessoal, um insulto ao meu legado, se esta comunidade não se proteger e não se fizer ouvir nestas eleições”, disse. “Querem dar-me uma boa despedida? Vão votar!”

Tanto Ruben como Fischer registaram a mensagem, mas não lhe dão seguimento. “Eu percebo o que ele diz, mas eu não consigo votar na Clinton depois do que ela e o marido fizeram à nossa comunidade”, diz Ruben. Fischer reconhece que ela é um “mal menor. “Mas é um mal menor cujos males eu não consigo esquecer”, acrescenta.

Em 2008, segundo as sondagens à boca da urna, 95% dos afro-americanos votaram em Barack Obama. Em 2012, o número desceu ligeiramente para os 93%. Agora, segundo a sondagem da Ipsos Reuters, Hillary Clinton deverá contar com 78% do eleitorado negro. Donald Trump aparece apenas com 5,3% dos votos, depois de ter apelado ao voto deste grupo demográfico em agosto da seguinte maneira: “Vocês estão a viver em pobreza, as vossas escolas não prestam, vocês não têm empregos, 58% da vossa juventude está desempregada… Que raio é que vocês têm a perder?”

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“Que raio é que vocês têm a perder?”, perguntou Donald Trump ao eleitorado afro-americano, pedindo os seus votos. As sondagens dão-lhe apenas 5,3% de votos do eleitorado negro.

É indiscutível que Hillary Clinton vai vencer de longe esse setor demográfico — mas se não o motivar a sair de casa nos mesmos números de 2008 e 2012, esta diferença pode vir a custar-lhe estados importantes e decisivos como a Carolina do Norte (onde os negros são 22,1% da população) e até a Florida (16,8%).

Para a comunidade afro-americana, uma das medidas da era Bill Clinton que mais polémica causou foi o aperto do código penal para crimes relacionados com drogas, que passaram a ser tratados como crimes violentos. Além disso, foi implementada a lei das “três falhas”, que ditou em muitos casos prisão perpétua para aqueles que fossem condenados três vezes. A comunidade afro-americana foi das mais afetadas por esta lei, que pode ter contribuído largamente para que 37% dos prisioneiros norte-americanos sejam negros, apesar de estes serem apenas 13% da população nacional.

A lei foi assinada em 1994 e, dois anos depois, Hillary Clinton fez um balanço positivo daquelas políticas, justificando-as com palavras que ainda hoje são alvo de críticas. Embora nunca tenha dito diretamente que a mensagem era sobre jovens afro-americanos, o contexto era claro:

“Muitas vezes eles estão ligados aos grandes cartéis de droga, eles já não são só gangues de miúdos. Eles são muitas vezes os miúdos a que chamam de super-predadores — sem consciência, sem empatia”, disse. “Podemos vir a falar de como é que eles deram nisto, mas, primeiro, temos de vergá-los.”

Durante as eleições primárias do Partido Democrata, Hillary Clinton lamentou ter dito aquelas palavras. “Olhando para trás, eu não devia ter dito aquelas palavras”, disse. Mas, para estes dois barbeiros do Harlem, o pedido de desculpas já vem tarde.

“Eu tenho um tio que tem 52 anos que acabou de sair da prisão. Ele esteve lá 27 anos. 27 anos!”, diz. “Tudo isto só porque foi apanhado com dois gramas de crack. E por causa de dois gramas de crack e leis racistas como esta, ele nunca vai poder ter uma vida como as outras pessoas, nunca vai ter uma oportunidade de se endireitar.”

A verdade é que, na Fresh Looks, ninguém tem palavras simpáticas a dizer sobre Trump. “Ele é racista, sim”, assume Fischer. “Mas ele nunca esteve na posição de arruinar a vida dos negros.”

Das leis de Jim Crow ao racismo “encoberto”

Para Fischer, embora os dias das leis segregacionistas (conhecidas como “leis de Jim Crow”) estejam para trás, os afro-americanos ainda não atingiram um grau de igualdade plena. “Basta olhar para a nossa História”, diz. “É completamente assustadora.” Segundo o barbeiro de 38 anos, o “privilégio branco” ainda domina a vida do país. “Aquelas pessoas que escravizaram os meus antepassados ainda estão na mó de cima enquanto que o nosso lado ainda está mal, ainda está a sofrer. É que eles ainda continuam a lucrar com tudo o que ficou para trás da escravatura”, explica. “A nós disseram-nos a certa altura que podíamos começar de novo, mas isso é falso, começámos bem lá atrás.”

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Fischer é barbeiro há 20 anos

Um dos factos políticos e sociais mais relevantes dos últimos anos de Barack Obama na Casa Branca é o surgimento do movimento Black Lives Matter, que foi ganhando força à medida que saíam notícias — muitas vezes acompanhadas de vídeos — de homens negros, a maior parte jovens, a serem gravemente feridos ou até mortos pela polícia. Nomes como os de Trayvon Martin (17 anos, morto por um guarda vigilante, ilibado do crime homicídio), Eric Garner (sufocado por oferecer resistência), Mike Brown (cuja morte causou uma onda de motins em Ferguson, no Missouri) ou Tamir Rice (morto com apenas 12 anos, depois de a polícia tomar a sua arma de plástico por verdadeira) passaram a ser amplamente conhecidos.

“Nada disto é novo, só que agora temos as redes sociais e telemóveis para filmar tudo”, explica. “Mas isto já começou antes, toda a gente se lembra do Rodney King”, referindo-se ao homem que em 1992 foi espancado — tendo sobrevivido — pela polícia depois de uma perseguição a alta velocidade. “Para muita gente, um homem negro com um capuz ainda é sinónimo de um criminoso.”

Ainda assim, olhando para os oito anos de Obama, Ruben diz que “as coisas não estão tão más como dantes”. “Ainda há tensão, ainda há racismo, mas hoje há mais direitos para todos. Não é só para os negros, é para as outras minorias, é para as mulheres, é para os gays e para as lésbicas, que já se podem casar”, diz. “Ficou muita coisa por fazer, mas há coisas que não lhe podem tirar.”