“Se não puder escarrar para cima de alguém, morrerei afogada no escarro”, grita Claire (Beatriz Batarda). E não tendo a patroa sobre quem escarrar ela escarra em cima da irmã Solange, escarra no chão e na sua fúria delirante, talvez ela escarre para cima de nós, que, nesta altura da peça, já não sabemos quem somos, onde estamos. Não sabemos para onde olhar, onde nos esconder. Mas não há saída. Estamos naquele ringue, naquela arena onde se trava uma luta de morte tão antiga como o mundo, somos todos cúmplices daquele crime que “As Criadas” vão urdindo na Sala Estúdio do Teatro D. Maria II, em Lisboa. Se o mundo é inclemente o teatro também deve sê-lo, disse Genet e Marco Martins leva esse repto ao extremo. Arme-se pois de uma boa dose de coragem e vá encarar o mundo como ele é, sem telas, nem ecrãs, sem escuridão protetora, nem narrativas piegas. Apenas carne, ódio, desespero.

Beatriz Batarda, é Claire Lemercier, numa performance total que mostra todo o seu talento

Beatriz Batarda, é Claire Lemercier, numa performance total, uma corrida de fundo onde o seu talento explode e nos esmaga

Jean Genet escreveu “As Criadas” numa das suas várias passagens pela prisão. Ele próprio arrumado entre os párias da sociedade, ladrão, prostituto, homossexual, ficou fascinado com o crime cometido pelas irmãs Papin, que, em 1933, mataram e esquartejaram a patroa e a filha, na cidade francesa de Le Mans. A peça, que estrearia em 1947 sob um coro de críticas (escreveram-se mais de 50 textos contra ela), é menos sobre estas assassinas em particular do que sobre os excluídos em geral. Não os excluídos que a luta de classes arregimentou para o seu exercito de mártires, nem aqueles que a igreja resgatou para o céu. Mas sim os malditos. Aqueles que não têm sequer direito a uma identidade, que não existem e que apenas sobrevivem como animais. Através deles Genet celebra a beleza terminal do mal, eleva os criminosos a ícones religiosos, sacraliza a violência. De resto, foi sempre este o tema recorrente da sua obra.

Quando não se tem nada a destruição pode ser o derradeiro gesto de dar um sentido à vida. Um gesto suicidário que é simultaneamente o desejo de renascimento e regeneração. Talvez vendo “As Criadas”, que se estreia esta quinta-feira, se possa olhar para a América que ontem elegeu Trump e encontrar algumas explicações. Talvez um povo onde abundam os excluídos, os encarcerados, os que não têm possibilidade de aspirar a nada dentro de uma sociedade que promove a ideia de que podem aspirar a tudo, carregue dentro de si um ódio destrutivo. Talvez eleger Trump ou incendiar a América sejam mesma coisa. Como para as irmãs Lemercier/Papin era preciso matar a patroa mesmo que para isso tivessem que morrer também.

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“As criadas não pertencem à raça humana”

Claire e Solange são irmãs e criadas da Madame. Vivem numa casa que não é a delas, usam as roupas que a madame já não quer e até beneficiam da sua condescendência e afeição apesar de a madame lhes trocar frequentemente os nomes. Nada têm delas. Nem sequer direito ao nome próprio. Naquele ambiente concentracionário que Marco Martins recria como um ringue de boxe espelhado, as irmãs alimentam-se do ódio e do fascínio que sentem pela madame: os seus amantes, os seus vestidos, os seus casacos de peles, os seus passeios. Na sua ausência vivem a fantasia de serem ela, vestem-lhe as roupas, usam-lhe a maquilhagem, satirizam-lhe os gestos, a voz, antecipam-lhe gulosamente a morte.

Neste quarto, enquanto fantasiam as suas vidas, o crime é apenas a continuidade do seu atrevimento, da sua provocação. O crime vai-se impondo como o único gesto possível contra a total ausência de sentido das suas vidas. À medida que o delírio e a excitação antecipada pelo crime crescem, Claire grita : somos criadas, somos malditas. As criadas não pertencem à raça-humana. Somos os seus espelhos deformantes e os nossos corpos foram feitos para usar os seus farrapos”.

Sara Carinhas, mostra aqui porque é que é uma das mais prometedoras actrizes da sua geração

Sara Carinhas, mostra aqui porque é que é uma das mais prometedoras atrizes da sua geração

A violência sem ecrã e uma grande lição de representação

“Uma ação teatral não deve decorrer num palco, mas em mim”, escreveu Jean Genet, que ambicionava um teatro sem os artifícios do naturalismo, um teatro gerador de símbolos e intimidades. As suas peças, são, por isso, prenhes de significados, de possibilidades de leitura, estabelecem ligações de sentido entre o mundo exterior e interior das personagens, entre atores e público. São profundamente políticas no sentido mais radical do termo e profundamente poéticas. Vivem da carne dos atores e cravam-se na carne dos espetadores.

Habituados que estamos à estética televisiva, à vida dentro dos ecrãs, com os seus brilhos, os seus finais felizes, às narrativas made in Hollywood, às telenovelas com a sua sexualidade conservadora, às histórias dos vencedores, aqui temos a carne nas sua crueza deformada, o cuspo, o escarro, o vómito, e intimidade disruptiva e perturbadora que existe entre os corpos daquelas duas irmãs. Aqui temos corpos que soltam urros animalescos vindos dos confins da dor humana, rostos distorcidos pelo medo e pelo ódio. Aqui as atrizes são literalmente animais de palco.

Beatriz Batarda mostra-nos, como já fez tantas vezes mas nunca desta forma, porque é que em 2000 ganhou a medalha de ouro da dificílima Guildhall School of Music and Drama, em Londres, e que isso de ser uma Atriz (assim mesmo, com A grande) não é fazer “caras bonitas numa telenovela” e depois pavonear-se nas revistas cor de rosa. A sua Claire esmaga-nos com toda a violência animal, selvática, sem redenção. Sara Carinhas, Solange, no mesmo ringue é a irmã/adversária à altura. Perversa, temerária, provocadora, põe o corpo dizer tudo o que as palavras não conseguem. E, ao longo de 1 hora e 45 minutos num crescente delírio de carne e palavras sem tabus, ambas encenam e oficiam um ritual de morte e violência sadomasoquista. Luísa Cruz, a Madame, é o corpo contido, escondido sob roupas sumptuosas e gestos magnânimos mas de onde exala igual perversidade, fragilidade e crueldade.

Luísa Cruz, a Madame, aparentemente frágil mas nunca derrotada é o corpo omnipresente na peça

Luísa Cruz, a Madame, a patroa aparentemente frágil mas nunca derrotada é o corpo omnipresente na peça.

“O corpo fala mais do que a razão, obriga a sair o lado mental do texto e sentir”, explica Marco Martins, enquanto Beatriz Batarda afirma que “quebrar o artificialismo típico do teatro era a única forma de falar com respeito desta gente, desta realidade”.

Nem Genet, nem a versão de Marco Martins fazem destas irmãs modelos de pureza, vítimas alienadas. Não. Elas são, simultaneamente vitimas e carrascos, espelho do mal e da violência dissimulada que é uma das patologias do nosso tempo. A violência encoberta pelos gestos educados, solidários, pela cortesia, pela mentira de que somos todos boas pessoas. Claire e Solange Lemercier somos todos nós e quem for expor-se às luzes fluorescentes que Marco Martins colocou sobre o palco e não voltar de lá com essa certeza e esse mal-estar é porque não foi capaz de ver nada.

A peça está em cena na sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, até 18 de Dezembro. Quartas às 19h30. De quinta a sábado às 21h30. Domingo às 16h30.