Há “pelo menos cinco ou seis anos, se calhar até há 10 anos” que Maximiliano MacNamara, chefe da Interpol no Chile, assiste ao fenómeno de delinquentes daquele país que partem para a Europa para se dedicarem a uma vida de furtos e roubos em vários países. Segundo o perfil que traça ao Observador, numa entrevista por telefone, estes indivíduos são do sexo masculino, entre os 25 e os 40 anos, de estrato social baixo e com antecedentes criminais. São conhecidos como os lanzas internacionales e, apesar de só terem chegado a Portugal em 2016, são conhecidos noutros países europeus, como Espanha, Itália, Alemanha e Inglaterra.

Este retrato assenta bem no perfil dos dois chilenos que escaparam do estabelecimento prisional de Caxias na passada noite de sábado para domingo, juntamente com um terceiro cidadão português, depois de terem sido colocados em prisão preventiva em casos distintos por furto. No caso particular Roberto Serrano Ulloa, de 29 anos, este já tinha antecedentes criminais, com condenações por recetação, furto, roubo, porte ilegal de arma, fraude e agressão no Chile. Além disso, sabe o Observador, também foi deportado em 2005 da Holanda após condenação por roubo, crime que também levou à sua deportação de Itália em 2015. Já Jorge Tobar Naranjo, de 30 anos, foi condenado no Chile por roubo, furto, roubo com intimidação, posse de drogas e recetação.

Porém, ao Observador, o chefe da Interpol no Chile confirma que não tem conhecimento de mais nenhum caso de lanzas internacionales que, ao terem sido presos na Europa, conseguiram escapar da prisão. “Isso nunca tinha acontecido antes”, diz ao telefone. Na segunda-feira, os dois foram fugitivos de nacionalidade chilena foram capturados no aeroporto de Barajas, em Madrid, Espanha. Porém, apenas Jorge Tobar Naranjo foi detido. Segundo fontes indicaram à Lusa, Roberto Serrano Ulloa foi libertado devido a um atraso no envio e receção em Espanha do mandado de detenção europeu e por não haver vaga no centro e detenção espanhol.

“Conveniência acima da violência”

O fenómeno surgiu em Portugal em abril do ano passado, segundo o Jornal de Notícias. Em novembro, a Diretoria do Norte da Polícia Judiciária deteve em flagrante delito três homens “provenientes da América do Sul” enquanto aplicavam o modus operandi já conhecido: “Escalamento e arrombamento de moradias sitas em zonas conotadas com pessoas de elevado estatuto socioeconómico”. Mas não foi apenas a Norte que os furtos aconteceram. Também no distrito de Lisboa, com particular incidência nos concelhos de Cascais e Sintra, tal como no distrito de Faro, foram reportados assaltos a casas. Mas foi na noite de Natal que os lanzas internacionales ficaram ainda mais conhecidos em Portugal, depois de terem assaltado a casa do nutricionista Fernando Póvoas, no Porto. Na mesma altura, também levaram 10 milhões de bens da casa de António Rodrigues, dono da Simoldes e o quinto homem mais rico de Portugal.

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“Eles mudaram a modalidade do delito”, diz Maximiliano MacNamara. “Antes dedicavam-se ao roubo por surpresa. As pessoas estavam descuidadas e eles tiravam-lhe carteiras, telemóveis, máquinas fotográficas. Atacavam sobretudo turistas. Agora dedicaram-se a um tipo de roubos que lhes exige mais cuidados mas que também tem um retorno económico maior”, acrescenta. A maioria dos objetos furtados são artigos de valor acrescentado, como joalharia, computadores ou outros aparelhos eletrónicos.

Depois de roubados, estes artigos são na sua maioria vendidos “a outros segmentos criminais que se dedicam a comprar os roubos” e, em quantidades menores, alguns são também enviados para o Chile por correio.

Porém, apesar desta mudança de “modalidade do delito”, os delinquentes sul-americanos mantêm a máxima da “conveniência acima da violência”. Ou seja, recorrem sobretudo a roubos de ocasião, em que estudam a casa a ser assaltada, e raramente atuam de forma violenta. Isso mesmo pode ser visto em Portugal, conforme disse à SIC, numa reportagem de 9 de fevereiro deste ano, o subintendente Resende da Silva, do comando metropolitano da PSP de Lisboa. “Até agora, não temos praticamente situações de violência praticadas por estes indivíduos”, disse então, mais de uma semana antes da fuga da madrugada deste domingo da prisão de Caxias.

Máfia? Nem por isso

Para Maximiliano MacNamara, dizer que os lanzas internacionales são membros de uma “máfia chilena”, como chegaram a ser descritos nalguma imprensa portuguesa, é um “exagero”. Isto porque a designação de “máfia” prevê uma organização rígida, com uma hierarquia pesada e intransponível, tal como uma rede de médio-longo alcance. “Não o caso destes lanzas internacionales“, garante.

“Não diria que é um grupo único, porque aparentemente a única vinculação que eles têm é o facto de serem chilenos”, explica. “Quando saem do Chile e vão para a Europa, são recebidos primeiramente por chilenos que já estão lá, sem que para isso haja uma hierarquia como a do crime organizado. São, isso sim, grupos que se unem para fazer delitos.”

Apesar de lhes ser reconhecida uma perícia fora do comum — alguns dos assaltos foram feitos a casas que tinham câmeras de vigilância e sistema de segurança ativos —, o chefe da Interpol do Chile diz que não há naquele país uma espécie de “escola de delito” e que “eles vão aprendendo à medida que ganham experiência”. Alguns deles, admite, aprendem técnicas de furto enquanto cumprem penas de prisão no Chile. “Infelizmente, os índices de reabilitação não são tão auspiciosos quanto isso e a prisão é uma escola de delito”, lamenta.

Na reportagem da SIC, “Ladrões de Luxo”, emitida a 9 de fevereiro, o subintendente Resende da Silva diz que os lanzas internacionales entram em Portugal de forma “legal”, uma vez que “passam pelo controle e a entrada é autorizada”. No caso de Roberto Serrano Ulloa e Jorge Tobar Naranjo, ambos terão entrado em Portugal por via terrestre e não num voo que aterrou em solo português.

Segundo Maximiliano MacNamara, “a maioria das pessoas estão em Espanha”, mas também há lanzas internacionales em Itália, Inglaterra e Alemanha. A maioria está em Espanha “por uma razão muito simples, que é a língua ser a que eles falam no país de origem”. “São pessoas de estrato social baixo e a maior parte não fala inglês”, diz. Porém, alguns chegam a aprender a língua dos países onde atuam e chegam a ser presos. Num programa transmitido numa televisão chilena em outubro do ano passado, dois antigos lanzas internacionales surpreenderam o público ao falarem alemão — que terão aprendido enquanto estiveram presos na Alemanha.

E porque vieram agora para Portugal, já que circulam por outros países europeus há vários anos? “Não sei, não os conheço”, começa por dizer o chefe da Interpol no Chile. Ainda assim, aventa uma possibilidade: “É possível que já exista um português dentro da estrutura criminal ou que algum chileno estivesse em Portugal. E também é possível que as autoridades em Espanha estejam mais em cima deles e eles tenham pensado em Portugal como uma boa alternativa”.

Guarda prisional: “Estes indivíduos não são como um recluso normal”

Engenho, perícia e criatividade. São características reconhecidas aos lanzas internacionales e Roberto Serrano Ulloa e Jorge Tobar Naranjo não são a exceção dessa regra. Ao Observador, o presidente Sindicato Independente da Guarda Prisional, Júlio Rebelo, também lhes traça um retrato fora da média. “São indivíduos muito bem treinados”, garante. “A especialidade deles é observar e estudar o sistema de segurança das casas, observam quando as pessoas saem, quando entram, sabem as rotinas todas”, diz.

Tudo isto, garante, foi essencial para terem conseguido escapar da prisão de Caxias. “Um recluso normal não está habituado a isto, mas para estes indivíduos isto é o pão nosso de cada dia”, diz.

É sabido que os três prisioneiros fugiram daquele estabelecimento prisional primeiro através da janela da cela, que fica no rés-do-chão, e depois por uma cerca da prisão, após terem passado entre duas torres de vigia onde não havia guardas ao serviço. Ao Observador, Júlio Rebelo diz que os três prisioneiros cortaram as barras da janela da cela com um objeto chamado conhecido como “cabelo americano”. Segundo a descrição do sindicalista, é um fio “muito fininho” que chega “perfeitamente” para cortar ferro. “Aquilo é incrível.”

E como é que entra na prisão? Esse é um verdadeiro desafio para os guardas prisionais. “Pode entrar escondido dentro de uma enormidade de coisas”, diz. “Dentro de um relógio, dentro de uns ténis…”, enumera. “Antigamente, a maior parte das tentativas eram feitas nas visitas. As mulheres vinham visitar os maridos à prisão e traziam um fio americano no cabelo, a prender o rabo de cavalo.”

Ainda assim, sublinha, nos seus 22 anos de profissão conta “com os dedos de uma mão” as vezes que viu um fio americano.

Seja como for, terá sido essa a maneira como os dois indivíduos de nacionalidade chilena, juntamente com um português, escapuliram da prisão de Caxias. Tudo isto, garante o sindicalista, dá-se devido “à falta de homens” naquela prisão. Mas, apesar de insistir nessa ideia, reconhece também o “talento” dos lanzas internacionales. “É assim… Eles vêem as falhas no sistema”, suspira.