Uma das bizarrias do cinema português é que onde quer que os filmes se passem, geralmente fala-se como se toda a gente fosse lisboeta ou estivéssemos em Lisboa. Um dos exemplos mais ridículos é “O Passarinho da Ribeira”, de Augusto Fraga (1960), que é ambientado no coração do Porto, mas praticamente ninguém fala “à Porto”. Ora uma das qualidades de “Fátima”, de João Canijo, que acompanha onze mulheres transmontanas numa peregrinação a pé até Fátima, é precisamente o cuidado com a caracterização das personagens, que chega aos sotaques, às expressões coloquiais, interjeições e modos verbais, tal qual (ou muito aproximadamente) existem, se ouvem e dizem na região, e que contribuem para a verosimilhança geral do filme. Outra coisa não seria de esperar do autor de “Noite Escura” e de “Sangue do meu Sangue”, que gosta dos seus filmes bem encostadinhos à realidade, de preferência a confundirem-se com ela. Como sucede em “Fátima”.

Em nome desse labor coca-bichinhos para obter um efeito de real o mais perfeito possível e plenamente convincente aos olhos do espectador, Canijo enviou as suas onze actrizes — Rita Blanco, Anabela Moreira, Teresa Madruga, Cleia Almeida, Sara Norte, Ana Bustorff, Márcia Breia, Íris Almeida, Vera Barreto, Alexandra Rosa e Teresa Tavares — para Vinhais, em Bragança, fazer um “estágio”. E depois mandou-as duas vezes em peregrinação até Fátima (a que começa ali é a mais longa e árdua de Portugal, cerca de 400 quilómetros), antes de ir filmar, reproduzindo ao pormenor as condições de uma romaria com estas características. O resultado chama-se “Fátima”, que não é “pró”, “anti” ou de “tese”. O que interessa ao realizador não é o sobrenatural. É o que os humanos são capazes de levar a cabo em nome desse sobrenatural. No caso vertente, um grupo de mulheres vir a pé de Trás-os-Montes para o santuário, numa maratona que é mais de sofrimento e de confrontos que de espiritualidade e fé, e onde o pronto-socorro ganha mais importância que o socorro das almas.

[Veja um “trailer” de “Fátima]

A interação entre elas, quase todas socialmente muito próximas e de várias idades, os mecanismos de funcionamento das suas relações e a forma como o crescente cansaço físico, emocional e psicológico causado pelas horas diárias de caminho e de sacrifício, faz nascer tensões, conflitos e fricções, e vai abrindo brechas na unidade de propósito, eis o que importa nesta ficção que quer ser tomada por realidade. E que ilustra a contradição entre o objeto e o espírito da peregrinação, e a permanente e exasperante conflitualidade que se instala nela e origina episódios ora cómicos, ora dramáticos. Canijo também não se esquece da componente “competitiva” (consciente ou inconsciente) desta odisseia rumo a Fátima, em que se procura superar os próprios limites e chegar primeiro, mais depressa, em melhor condição do que os outros. Para depois, deixadas para trás queixas, mazelas e dissensões, tudo terminar numa comoção coletiva e partilhada no santuário, à luz das velas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja outro “trailer” do filme]

Filmado como se fosse uma reportagem de proximidade extrema, com acesso sem limites à intimidade das participantes, incorporando mesmo, aqui e ali, imagens feitas pelas atrizes – todas ótimas e metidas nas personagens como ervilhas em vagem — nos seus telemóveis, “Fátima” tem duas versões para cinema, uma mais longa e outra mais curta, e outra para televisão, de cinco episódios com quase uma hora cada um. E vai ocupar um lugar especial, pelo método de elaboração e pelo ponto de vista, pela ponta inédita em que pega e pela qualidade dramática, pelo peso de verismo e pela isenção de “parti pris” e de julgamento, na filmografia nacional dedicada ao fenómeno fatimista, que abrange títulos tão díspares como “Fátima Milagrosa”, de Rino Lupo, “Fátima, Terra de Fé”, de Jorge Brum do Canto, “Fátima Story”, de António de Macedo, ou “O Milagre Segundo Salomé”. Mas como “Fátima” não havia nenhum. Até agora.