André Ventura anunciou que o Chega vai avançar com uma ação criminal contra Marcelo Rebelo de Sousa por traição à pátria, após a as declarações do Presidente da República em que sugeriu “reparações” aos países colonizados. “O Chega não poderia deixar de assinalar a gravidade de palavras que tocam nos mais velhos, os soldados, história, forças armadas e ex-combatentes. É em nome desses todos que decidimos avançar com processo inédito de acusação ao Presidente da República”, revelou o presidente do Chega.

A decisão foi tomada à porta fechada em mais de duas horas de uma reunião que começou com muitos deputados divididos relativamente ao avanço do processo e que acabou com a decisão de uma queixa inédita contra o Presidente da República. “Se fosse uma casa de apostas no início apostaria que não iria ser aprovado”, resume um dos deputados do Chega ouvidos pelo Observador, para explicar que tudo mudou num curto espaço de tempo, tendo em conta que no início não havia uma decisão clara.

A sala do Senado, onde se reuniram os representantes do Chega na Assembleia da República, estava dividida e a prova disso foi que o próprio André Ventura transmitiu a sensação de que estava mais inclinado para deixar cair a ideia, mas “parecia não ter uma ideia fechada” antes de ouvir os deputados.

Depois de o presidente do partido apresentar as conclusões dos juristas — e não tendo expressado opinião para não influenciar —, praticamente todos os deputados do Chega se inscreveram para falar e para discutir os prós e os contras de avançar para um processo desta dimensão, nomeadamente quando estavam cientes de que não vai ter luz verde por não contar com o apoio de PSD e PS — quando precisa de dois terços dos deputados.

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Durante a reunião os principais alertas foram para os “perigos” que o Chega corria em termos eleitorais (desde logo nas europeias e na Madeira), mas também porque uma decisão deste género é vista como sendo “criticada pelo eleitorado do centro que um dia poderá levar André Ventura a primeiro-ministro”, recorda um deputado. Por outro lado, acredita-se que é uma opção politicamente relevante pela dimensão e que fica colada à pele do partido e há quem creia que a comissão parlamentar de inquérito às gémeas será preferível e mais relevante para escrutinar um nome como Marcelo Rebelo de Sousa.

Porém, houve também intervenções “inflamadas e revoltadas” com as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa e vários deputados a apontar para uma conclusão: “Não é uma questão jurídica, é uma questão política. Se isto não é uma traição à pátria, o que é? Marcelo Rebelo de Sousa estava naquele jantar e falou enquanto chefe de Estado”, conta um dos presentes, frisando que, mesmo que não dê em nada, o Chega não pode “trair o eleitorado” e aceitar uma “traição à pátria”. “Era o ADN do Chega que estava em causa”, atira outro representante do partido, que considera que depois da ameaça era “impossível dar um passo atrás” porque isso deixaria o partido mal na fotografia.

Vários deputados contaram ao Observador que as intervenções “mais fortes” foram um ponto de viragem para a decisão do grupo parlamentar —  até para vários membros da direção que estavam mais inclinados para o não —, que acabou por decidir por unanimidade por uma condenação a Marcelo Rebelo de Sousa. Aliás, a votação que estava prevista para o final era para ser de braço no ar, mas a decisão acabou por ficar nas mãos de André Ventura que, no fim de ouvir todos e tendo em conta o rumo da conversa, concluiu que estava em condições de não deixar passar o caso sem quaisquer consequências. A reunião (e a decisão) acabou com uma ovação — e há quem diga que “o grupo parlamentar saiu dali muito mais forte”.

No final da reunião, André Ventura anunciou aos jornalistas que deu indicações para que o líder parlamentar transmita ao presidente da Assembleia da República que o Chega decidiu avançar com o procedimento, com base no artigo 130.º da Constituição, já que não há qualquer caso no passado que sirva de exemplo. “Visto nunca ter sido aplicado, [o Chega avançará para que] se tomem as diligências necessárias para que o processo tenha avanço, para que seja analisada a acusação e para que se chegue a um debate em plenário que penso que terá de acontecer nos próximos dias”, referiu.

O processo contra Marcelo tem como base o artigo 130.º da Constituição, que diz que “por crimes praticados no exercício das suas funções, o Presidente da República responde perante o Supremo Tribunal de Justiça” e que “a iniciativa do processo cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções.”

André Ventura tem deputados suficientes (50 deputados do Chega são mais de um quinto do hemiciclo) para suscitar o processo, mas para o mesmo prosseguir seria necessária a aprovação por dois terços do Parlamento. Ora, PS e PSD, que têm 156 deputados, continuam a conseguir garantir mais de dois terços do hemiciclo (67,8%) e, tal como o Observador avançou, ambos vão votar contra esta proposta. Ou seja, o Chega apenas é suficiente para avançar com o processo, mas não tem deputados suficientes para o aprovar.

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“Presidente da República deixou de representar o interesse nacional”

André Ventura sublinhou que o Presidente da República merece “o integral respeito enquanto chefe de Estado, é o nosso representante legítimo”, mas considera que não defendeu o interesse nacional. “Estes mecanismos apenas devem ser usados em casos excecionais e graves, quando sentimos que deixa de nos representar e passa a representar outros interesses que não o nacional”, entendeu, frisando que “o Presidente da República deixou de representar o interesse nacional e passou a representar o de outros Estados”.

“A gravidade aumenta quando, após as suas palavras, dois Estados já pediram reparação e indemnização em Portugal”, notou o presidente do Chega, que entendeu que o partido não ficaria bem na História se nada fizesse relativamente a este caso.

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Questionado sobre a diferença de tratamento de que o Chega muitas vezes se queixa, Ventura explicou que o cargo de Marcelo Rebelo de Sousa é diferente: “Disse aos outros países que somos criminosos, isso é deixar de ser chefe de Estado de Portugal. Nada tem a ver com liberdade de expressão.” Para Ventura, o país é como a seleção: “Portugal é como quando vemos a seleção jogar, podemos não ter razão, mas estamos sempre ao lado dela. O nosso país é assim, às vezes não tivemos razão, falhámos, mas não se trai o nosso país, é o nosso amor maior.”

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