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"Bravo, Amália". Quando ouviram La Rodrigues, os italianos apaixonaram-se

Concertos, programas de televisão e atuações na rádio. No início da década de 70, Amália Rodrigues conquistou Itália e há uma nova edição com três discos inéditos em Portugal para o recordar.

Amália Rodrigues já tinha estado em Itália mas nas ocasiões anteriores não se tinha visto o fenómeno daqueles primeiros anos da década 70. Amália na televisão e nos teatros, Amália nos palcos e na rádio. Quase sempre a cantar em italiano, por vezes até quando chegava a altura de dar clássicos obrigatórios como “Barco Negro” aos fãs. “La Tarantella”, “Vitti ‘na Crozza”, “Canzone per Te”, “Ay Che Negra” ou “La Tramontana”. Os títulos têm sotaque mesmo que ninguém os diga em voz alta e foi sobretudo por isso que estas gravações ficaram longe do mercado português.

Diz Frederico Santiago, o responsável pela contínua pesquisa de catálogo por filtrar e editar na Valentim de Carvalho, que nada disto acontecia por simples capricho comercial. Amália cantava em italiano como cantava em espanhol. Era quando dava o fado às plateias internacionais que o tempo parava, mas que ninguém menospreze o gosto popular que a fadista tinha em fazer seu o que era de todos quando saía de Portugal.

Amália em Itália (edição marcada para 7 de abril) mostra-o em três discos, entre gravações de estúdio e ao vivo, algumas nunca editadas em Portugal outras inéditas em absoluto. É o mesmo Frederico Santiago que, em entrevista, as apresenta, deixando ainda algumas pistas para a comemoração dos 50 anos de Fados 67, com edição marcada para o final de 2017.

“Amália em Itália”, de Amália Rodrigues (Valentim de Carvalho)

O que há de novo neste Amália em Itália?
Acaba por ser tudo novo. São dois LPs que a Amália gravou em Itália e que nunca tiveram edição portuguesa, um deles em estúdio com folclore italiano, em que ela canta não só em italiano mas também em alguns dialetos. Uma coisa que ela gravou em duas tardes. O terceiro disco é uma gravação ao vivo, inédita, de uma tour de 1973, com um concerto inteiro em Roma e depois excertos de concertos em Catania, Palermo e Milão.

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Como é que acontece esta etapa italiana? Porquê nesta altura?
O agente da Amália por lá era o Franco Fontana, o mesmo homem que levou a bossa nova para Itália e que convidou pela primeira vez grandes cantores internacionais de um mundo folk que começava no final dos anos 60 a tomar conta do mundo. Começa a fazer concertos no Teatro Sistina, quase sempre à segunda feira, exatamente porque esse era o dia da folga teatral. A Amália foi uma das primeiras convidadas. E aquilo transformou-se numa coisa explosiva. Apesar do sucesso de gente como Ella Fitzgerald, o público italiano adotou a Amália mais do que a todos os outros, apaixonou-se e ela começou a ir lá com muita frequência. Há um ano específico em que dá 50 concertos em Itália.

Quem é Franco Fontana?
Nos anos 60 esteve ligado ao teatro, era um homem muito culto e era louco pela grande música popular. Leva a Itália o Vinicius, a Joan Baez, a Odetta… E conhecia a Amália, pelos discos. Convida-a também e percebeu rapidamente o efeito dela sobre o público italiano. Teve olho para o negócio mas também tinha gosto. E os italianos adotaram-na, apaixonaram-se.

Mas não era a estreia de Amália em Itália.
Não, mas foi o verdadeiro primeiro encontro com o público. Um jornal de Turim na altura escrevia “vai chegar Amália Rodrigues, a cantora estrangeira que os italianos mais gostam”. E depois, nos concertos, os italianos gritavam “Barco Negro” e “Tirana”. Aquela receção calorosa, a maneira de estar dos italianos, que era especial, mais presente… pateiam se não gostam, gritam “bravo” quando gostam, esse tipo de coisas. Foi uma época decisiva nas mudanças da forma de estar em palco da Amália.

Amália à chegada a Milão em 1973

E que mudanças foram essas?
Entre os anos 60 e 70, deixa de haver apenas o microfone fixo, o microfone de mão permite outra mobilidade. Amália tinha que estar quieta até ao aparecimento do microfone de mão, o que a torna muito mais livre, mais leve e mais associada à maneira de ser do público italiano. Por outro lado, era o fim dos anos 60, e ali estava aquela mulher, de cabelos compridos, óculos escuros, aquela maneira de falar quase displicente. Ela era muito portuguesa mas também era muito mediterrânica, quem não soubesse acreditaria facilmente se alguém dissesse que ela era italiana.

Mas a verdade é que Amália não cantava apenas fados, e menos cantaria em Itália…
Claro, mas há razões para isso. Amália estreou-se em 1939 mas em concerto foi a partir de 1944, quando vai pela primeira vez ao Brasil. Não se faziam concertos de fado antes da Amália, os fadistas cantavam nas casas de fado, era assim que funcionava. E Amália subia a um palco porque era uma cantora que conseguia cantar outras coisas. Sempre cantou muitas coisas sem ser fado, nos anos 70 isso intensificou-se. Mas quando chegava o momento de cantar o fado, tudo se tornava ainda mais especial. Tudo parava e surgia o fado, acontecia uma catarse e as críticas rendiam-se, falavam da “mulher de negro no palco”. Sem nunca esquecer o outro lado, o do folclore e das palmas.

[excerto do documentário “The Art of Amalia”:]

E isso também gerava um compromisso entre os gostos de Amália e o lado mais comercial daquilo que fazia.
Ela tem origem na Beira Baixa, os primeiros contactos com a música terão sido as canções que ouvia a família cantar em casa. E tinha uma loucura pelo folclore. Portanto, era uma mistura que atraía o público, claro, mas que era fruto de uma paixão genuína. Hoje, aquilo que muita gente diz ser “a maneira certa de se cantar o fado” vem da influência deixada pela Amália, que foi buscar inspiração aos melismas da Beira Baixa. O fado antes da Amália era muito menos ondulado. Apesar de ser a maior fadista de sempre, não era só uma fadista, cantava como respirava. Nos anos 50, quando teve um êxito enorme no México, começou a cantar rancheras. Fazia o que queria, o que gostava. E foi por não querer agradar a ninguém que acabou por agradar a tanta gente. É um dimensão artística muito grande e ainda hoje em Portugal as pessoas não têm noção da carreira da Amália.

O que falta reconhecer?
Todo o conjunto, que é irrepetível. Basta pensarmos nos sítios onde ela cantou. E num tempo em que as fronteiras estavam muito definidas. As pessoas da música ligeira não entravam nas salas da música erudita. Ela ultrapassou isso tudo. Cantou no festival de Edimburgo, no Lincoln Center, no Carnegie Hall, sempre entre o erudito e o popular, com um cuidado com a palavra que não era o normal. Ao mesmo tempo, e sabendo o que valia, não vivia deslumbrada. Num tempo em que não havia a categoria “música do mundo” nem a curiosidade pelo exótico, aquilo era prestígio de cantora, tão simples quanto isso. Uma mulher que no final dos anos 60 canta na Roménia, na Jugoslávia, na União Soviética. Ultrapassava tudo e mantinha-se à parte das questões políticas. Sabia o que se passava mas também sabia que a arte era algo diferente, e nunca se misturou com nada disso.

Ao vivo no Teatro Sistina de Roma em 1973

Mas a verdade é que há coisas que continuam a ser reveladas como inéditas, ainda há gravações, como esta, e outros elementos que nos são desconhecidos, edições que nunca chegaram a Portugal.
A Amália gravou muito, mesmo muito. E durante anos e anos o público português lamentava muito que ela não cantasse mais fado. Talvez muitas destas gravações não interessassem muito cá, em termos de mercado. Porque o pensamento estava mais próximo da tradição, algo como “uma fadista tem de cantar fado” e a Amália, para esses efeitos…

Não era uma fadista?
Não quero menorizar o fado. O fado é enorme, feito por ela então é difícil de descrever. Mas ela era mais do que isso. E era-o de forma natural, tinha a voz perfeita, em todos os registos, com uma extensão fenomenal e um timbre bonito. Sem nunca ter estudado nada. A isso acrescentava uma dramaturgia da palavra que é muito raro encontrar. E notamos exemplos disso nas canções menos óbvias. Ouçamos “Uma Casa Portuguesa”. Amália canta tudo aquilo a correr, até que chega ao “uma promessa de beijos / dois braços à minha espera”. E aí é como se tudo parasse. Não foi o fado que lhe deu isso, ela era assim. E era assim em tudo, no palco, no estúdio e nas decisões que tomava.

"Em Itália, Amália era convidada para ir às grandes salas, as que estavam inseridas num circuito, mas em qualquer altura podia aparecer alguém de terras mais pequenas que a convidava para cantar. Ela perguntava aos guitarristas. Se tudo estivesse OK, ela ia."

Decidia sobre todos os aspetos da carreira?
Todos. Decidia tudo, os penteados e os vestidos pretos, que foi ela que instituiu. Ninguém cantava assim, nem assim nem à frente das guitarras. Por exemplo, em Itália ela era convidada para ir às grandes salas, as que estavam inseridas num circuito, mas em qualquer altura podia aparecer alguém de terras mais pequenas que a convidava para cantar. Ela perguntava aos guitarristas. Se tudo estivesse OK, ela ia. Não era propriamente uma agenda formal. Franco Fontana, o agente italiano, era quem lhe arranjava os principais contratos e depois as coisas aconteciam.

E o mesmo se passava com os discos?
Sim. Tirando um pequeno período nos anos 50, em que esteve associada a uma companhia francesa, ela nunca quis nenhum vínculo editorial. Preferiu sempre voltar à Valentim de Carvalho, onde não tinha horas de estúdio, fazia o que queria, quando queria. Graças a isso, há muito material que nunca chegou a ser lançado. E nunca cantava a mesma canção da mesma maneira, com um improviso que mais parecia o de um músico de jazz. Sem que alguma coisa lhe saísse mal alguma vez.

Ou seja, um trabalho aparentemente interminável para quem agora trabalha esses arquivos, não?
Totalmente. Caixotes e caixotes de gravações, com algumas falhas na catalogação. E estamos só a falar da Valentim de Carvalho, porque depois há os arquivos das televisões, das rádios… a televisão francesa tem mais coisas dela do que a televisão portuguesa. Mas nunca se torna repetitivo. Ela era de tal maneira espontânea a cantar que nunca é mais do mesmo. Termos tido uma voz assim é algo de extraordinário. E estamos tão habituados à imagem e à figura da Amália que raramente paramos para pensar no significado e no valor de tudo isto, na dimensão. São figuras únicas. Como o Pessoa. E é curioso como a Amália nunca cantou Pessoa, pelo menos oficialmente. Dizia que Pessoa não era para cantar.

Fotografada em Itália por Augusto Cabrita

Este ano ainda será reeditado o Fados 67.
Sim, um disco que faz 50 anos, o álbum que junta mais fados tradicional, aquele fado estrófico. Porque até nisso a Amália foi inovadora, foi ela que começou a cantar com mais êxito os fados com refrão no tempo do Frederico Valério. Depois, mais tarde, aparece o Alain Oulman com uma música já muito mais erudita e onde cabia poesia também mais erudita. Nesse disco é acompanhado pelo conjunto de guitarras do Raul Nery e é nessa altura que passa a haver uma formação com duas guitarras, uma viola e uma viola baixo. A Amália canta com eles ao vivo pela primeira vez no Lincoln Center, em Nova Iorque, em 1966, percebeu que aquela fórmula fazia mais espectáculo e era perfeita para salas grandes. Depois, faz sessões de gravação com eles, algumas que integraram esse LP, outras editadas de forma dispersa, em singles e outras coisas que nunca saíram. Esta edição vai ser uma integral das gravações com o conjunto do Raul Nery. Mais uma das pessoas com quem se cruzou no sítio certo, na hora certa.

E que a ajudaram a fazer história.
Talvez essa tenha sido a sorte que se aliou ao seu talento. A Amália estreia-se em 1939, está a cantar no Luso e em vez de ter um público normal, de lisboetas, tem a alta sociedade europeia que estava refugiada. Mas nunca andou atrás de ninguém. Nem do Alain Oulman, que foi ter com ela ao Olympia com uma canção. Aliás: quando, no início dos anos 50, ela canta um poema do Pedro Homem de Mello à socapa [“Fria Claridade”], ele telefona-lhe a dizer “a minha poesia através de si subiu até ao povo”. Isto com um público que sobretudo procurava comover-se, não queria distrair-se. A maior revolução que aconteceu no fado foi a Amália e foi sobretudo com uma mudança de conteúdo, não de forma. Mais do que qualquer outra coisa, foi uma revolução interior.

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