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Os esqueletos decorados das catacumbas romanas

Os mártires esquecidos das catacumbas romanas ressuscitam em livro. Os corpos, repletos de jóias, são uma lembrança bizarra de um tempo de rutura dentro da Igreja Católica.

A crença de que determinados objetos têm um valor sagrado, constituindo um meio de ligação entre o terreno e o divino, é comum a muitas religiões no mundo inteiro. Através das relíquias materiais de Deus e dos seus santos, as pessoas comuns têm a possibilidade de tocar o paraíso. A preservação de relíquias, restos mortais ou objetos associados a figuras religiosas, constitui um aspeto importante de religiões como o hinduísmo e de algumas vertentes do cristianismo, principalmente no catolicismo. Em relação à religião católica, a existência de relíquias foi um dos principais pontos de discórdia com o protestantismo.

E foi no auge do movimento protestante, no século XVI das reformas de Martinho Lutero e João Calvino que abalaram profundamente as fundações da Igreja Católica, que surgiu uma nova espécie de artefacto religioso. Os “Katakombenheiligen”, ou “santos das catacumbas”, eram relíquias que tinham como objetivo renovar a fé enfraquecida pelas ideias reformistas. Mais do que isso, são hoje uma lembrança bizarra que jaz esquecida e escondida em catacumbas semelhantes àquelas que os viram nascer.

São Valério em Weyarn, na Alemanha © Paul Koudounaris

Um brinde à morte

Em 2008, enquanto trabalhava no livro The Empire of Death (2010) sobre capelas de ossos, o fotógrafo e especialista em História de Arte Paul Koudounaris deparou-se com algo inesperado. Tinha viajado até à Alemanha à procura de artefactos que pudesse incluir no seu livro. E foi ai que, numa pequena aldeia alemã, um habitante local lhe fez uma proposta que não pôde recusar. “Está interessado em ver uma antiga igreja no meio da floresta com um esqueleto coberto de jóias a segurar um cálice de sangue na sua mão esquerda, como se lhe estivesse a propor um brinde?”, perguntou-lhe. Koudonaris não hesitou. “Claro que sim!”.

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A pequena igreja, escondida no meio da floresta, estava praticamente em ruínas, mas continha ainda intactos os altares e alguns bancos desgastados, alinhados ao longo do corredor central. Os anos de negligência sob o governo da Alemanha Comunista tinham deixado as suas marcas. A única coisa que permanecia intacta era o esqueleto, apoiado verticalmente numa dos corredores laterais, relatou Koudounaris à Smithsonian Magazine. Vestido com roupas ricas e decorado com jóias, segurava um cálice de vidro que se acreditava conter o seu próprio sangue. Koudounaris nem queria acreditar no que os seus olhos viam. “A primeira vez que encontrei um desses esqueletos numa igreja local, considerei-o uma espécie de aberração histórica”, contou o autor ao Observador. “Ainda não tinha consciência do quão comuns eles tinham sido”.

São Pancrácio, transladado para a cidade de Wil na Suíça em 1672 © Paul Koudounaris

Sem prever, Koudounaris voltou a encontrar-se com outra dessas “aberrações histórias”. Noutra igreja alemã, escondidos numa cripta, estavam outros dois esqueletos minuciosamente decorados. Foi aí que o autor percebeu que “havia qualquer coisa de muito maior e mais espetacular” em relação a estas estranhas relíquias. “No início considerei-os uma curiosidade histórica. Não compreendia ou apreciava o seu lugar na história religiosa”, mas depressa se tornou claro de que se tratavam de artefactos com uma “importância histórica tremenda” e que nunca ninguém se tinha interessado por eles. Nunca ninguém tinha querido contar a sua história.

"Tornou-se claro de que tinham uma importância histórica tremenda, mas que nunca ninguém se tinha realmente focado neles ou na sua história."

Ao mesmo tempo que trabalhava no seu livro, o autor ia-se deparando aqui e ali com outros esqueletos, “sempre na Alemanha, Suíça ou Áustria”. Acabou por referi-los em The Empire of Death mas, ao mesmo tempo, apercebeu-se de que se tratava de “um tópico muito maior que merecia o seu próprio livro”. Koudounaris parecia estar destinado a dar voz a estas relíquias esquecidas. “No final do primeiro livro, já estava a trabalhar num segundo”, revelou ao Observador. “Quando o primeiro livro saiu, já tinha uma grande quantidade de fotografias. Fui falar com o meu editor e disse-lhe ‘aqui está o próximo projeto. Precisamos de dar a estes esqueletos o seu próprio livro'”.

O resultado de mais de 5 anos de pesquisa saiu em livro em 2013. Heavenly Bodies conta a história dos mártires das catacumbas romanas da Via Salaria e do caminho que percorreram até aos altares das igrejas europeias.

São Valentim com uma máscara de cera em Bad Schussenried, na Alemanha © Paul Koudounaris

 

Os corpos dos mártires esquecidos

A primavera de 1578 passou serena para quem trabalhava nas vindimas ao longo da Via Salaria, nos arredores de Roma. Mas o dia 31 de maio haveria de ser diferente. Um grupo de trabalhadores descobriu uma passagem que conduzia a uma galeria subterrânea. Nela, encontraram várias antecâmaras e dentro delas centenas de restos mortais, presumivelmente datados do início da era cristã. A catacumba tratava-se de um dos muitos locais de enterro usados por cristãos entre os séculos I e V d.C., conhecidos por Coemeterios. A descoberta da primeira catacumba depressa levou à descobertas de outras. Umas atrás das outras, uma série de galerias foram reveladas por debaixo das vinhas. Durante séculos, milhares de pessoas tinham trabalhado nas vindimas ao longo da Via Salaria, sem fazerem ideia do que se escondia por debaixo.

São Constantino, descoberto na catacumba de Praetextatus, atualmente em Rorschach, na Suíça © Paul Koudounaris

As catacumbas depressa passaram a obsessão pública, tornando-se alvo de romarias. Escondidas durante séculos, foram descritas como um espaço sagrado capaz de “levar às lágrimas” e alguns apontaram-nas como a oitava maravilha do mundo. Apesar de não haver certezas em relação a quem pertenciam as ossadas, era consensual de que eram sagradas. A justificação baseava-se na datação dos ossos – eram certamente mártires, que preferiram perder a vida a renegar a própria fé. O seu sacrifício tornou-os santos, “Katakombenheiligen”, os “santos das catacumbas”, um termo que pretendia diferenciá-los daqueles que tinham sido canonizados pelo processo regular.

Santos ou não, a descoberta das catacumbas era a resposta a uma prece. No século XVI, a Reforma abalou profundamente a Igreja Católica. As ideias reformistas de Lutero e Calvino espalharam-se rapidamente pelo norte da Europa e o papel da Igreja enquanto instituição religiosa foi posto em causa. Igrejas foram vandalizadas, relíquias e artefactos foram destruídos, e uma profunda crise abateu-se no seio da Igreja. Era preciso renovar a fé dos crentes – era preciso um sinal divino.

Os ossos dos mártires romanos começaram então a ser exportados para diversos pontos da Europa, principalmente para o sul da Alemanha, que agrega o maior número de exemplares ainda hoje. Algumas igrejas e mosteiros adquiriram vários, como é o caso da basílica alemã de Waldassen, que tem atualmente 10 esqueletos completos e dois bustos.

São Vicente em Stams, na Áustria, apresenta a mão levantada, num gesto de modéstia © Paul Koudounaris

Existem registos das movimentações das relíquias desde finais do século XVI, mas a maior onda de exportação terá acontecido após a Guerra dos Trinta Anos, em finais do século XVII. Estes eram enviados para igrejas para substituir as relíquias destruídas, mas também para casas nobres, como símbolo da piedade e do prestígio da família. É difícil dizer ao certo quantos esqueletos foram exportados. A falta de registos, muitos deles incompletos ou fragmentados, não permite precisar quantos corpos foram retirados das catacumbas romanas desde a sua descoberta em 1578. “Algumas paróquias, por exemplo, têm registos muito detalhados e eu pude traçar grande parte da sua história”, disse Koudounaris ao Observador. “Noutros casos, era exatamente o oposto. Tinha apenas um esqueleto e nada mais – nenhum registo e nenhum maneira de rastreá-lo”.

"Por vezes, os esqueletos encontravam-se muito bem documentados. Algumas paróquias, por exemplo, têm registos muito detalhados e eu pude traçar grande parte da sua história. Noutros casos, era exatamente o oposto."

O processo de identificação dos restos mortais era algo nebuloso. Alguns acreditavam que os corpos dos mártires brilhavam ligeiramente, outros que libertavam um aroma adocicado. Mas independentemente do processo usado, este era feito na íntegra pelo Vaticano. Quando as ossadas não traziam identificação, os santos eram “batizados”, ou seja, recebiam um novo nome. Este era geralmente escolhido a partir de outros santos conhecidos ou de outros primeiros cristãos. Isto fazia com que existisse um grande número de réplicas. O nome “Bonifácio”, por exemplo, era bastante comum na Alemanha. As relíquias eram depois seladas e enviadas, fazendo-se acompanhar pelos respetivos documentos de autenticação. Durante mais de dois séculos, as relíquias dos mártires romanos foram transportadas para o norte da Europa. A sua proveniência nunca foi questionada.

Contudo, por volta do século XIX, tornaram-se uma lembrança bizarra e mórbida de tempos idos, e um motivo de embaraço para muitos católicos. Anteriormente sinónimo de esplendor, muitas relíquias foram escondidas e esquecidas.

 

Uma visão da Nova Jerusalém

Os esqueletos articulados eram geralmente decorados de forma extravagante. O tipo de decoração dependia do número de ossos recebidos, dos fundos disponíveis para o restauro e das opções para a sua disposição na igreja. Alguns eram simplesmente colocados num caixão trabalhado, escondidos dos olhares dos visitantes, mas outros eram meticulosamente decorados com ouro e pedras preciosas.

A sua aparência foi concebida para evocar a Nova Jerusalém, descrita no livro do Apocalipse de São João. Este local divino, feito de ouro e pedras preciosas, foi interpretado como sendo um local para os abençoados e símbolo da Igreja Triunfante. Eram uma lembrança daquilo que aguardava os justos e os crentes de fé verdadeira no dia do juízo final.

São Félix em Gars am Inn, na Alemanha © Paul Koudounaris

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