“As pessoas pensam que Trump é estúpido, mas ele não é nada estúpido. Pelo contrário. Há cinco anos ele ainda falava a linguagem típica da um investidor de Wall Street, com formação académica. Agora fala a linguagem de quem nem completou a educação básica. É assim que ele consegue que alguém num bar, ouvindo vagamente a televisão, exclame: “Olha, aquilo sou eu a falar””
Timothy Garton Ash, historiador e professor em Oxford

Donald Trump é Donald Trump.

O impacto da marca é tão grande que nem foi preciso encontrar outro termo para dar força à frase inicial deste texto. Todos o conhecem. A maioria solta um riso trocista quando ouve falar dele. Alguns, em segredo, desejavam ser como ele.

Muitos adoram-no. Muitos mais odeiam-no. Mas, neste mundo em que só conta quem aparece na TV, Donald Trump é o maior mestre no uso da exposição pública.

Quase 70% dos americanos dizem mal dele? Ele não se importa. “Donald Trump nasceu sem o gene da vergonha. Não interessa se é apanhado ou não. Não quer saber. Parece que nada o afeta”, aponta Linda Stasi, colunista do NY Times.

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A ascensão política de Donald Trump é um carrossel inacreditável de confusões, insultos, mentiras e ideias deslocadas de qualquer noção de ‘politicamente correto’. “Donald percebeu, há muitos anos, que quando alguém está no meio de um escândalo, e depois doutro, e depois doutro, a maioria das pessoas já se esqueceu, a partir de um certo ponto, o que estava em causa no primeiro deles. E, com o tempo, já não se lembra mesmo do que se passou nos outros também. Mas com aquilo tudo, o que fica é que a pessoa que protagonizou esses escândalos todos se torna incrivelmente conhecida. E isso tem um peso maior do que o lado negativo do que vai ficar esquecido. Donald impôs-se assim. E veio para ficar”, explica Dan Balz, colunista do Washington Post.

The Donald

Vaidoso, narcisista, arrogante, intolerante, singular. Exibicionista, egocêntrico, com traços de psicopata social.

Tudo isto e muito mais já foi dito, vezes sem conta, sobretudo no último ano, desde que ficou claro que ele iria mesmo ser o nomeado presidencial do Partido Republicano para 2016, sobre Donald Trump.

Ele merecerá todas essas qualificações violentas, mesmo para os modos cada vez mais extremados da política americana.

Mas Donald, convenhamos, não caiu do nada. Foi um produto do estado em que o Partido Republicano caiu na última década e surge como consequência ainda menos convencional dos estragos que o fenómeno “Tea Party” fez nos pilares do conservadorismo mais clássico da direita americana.

Roger Stone, um dos principais conselheiros de Trump há vários anos, não faz a coisa por menos: “A dinastia da família Bush é passado. Não queremos mais disso. O partido deixou de ser pertença do ‘country club’ de Jeb Bush. Muito menos a política ‘establishment’ de Paul Ryan e Mitch McConnell. Este movimento não vai parar”

Donald agitou com tudo nestes últimos meses. Foi o primeiro caso de alguém sem qualquer passado político a ser Presidente dos Estados Unidos. Outros tentaram. Ross Perot, em 1992, terá sido o caso mais parecido, mas teve 19% dos votos e com uma diferença fundamental: não obteve a nomeação de um grande partido. Correu por fora.

Donald, não. Ele foi mesmo ao osso. Fez do Partido Republicano barriga de aluguer, mandou ao tapete todos os opositores internos. Insultou-os, meteu-se com eles.

Mas, no fim, obteve a nomeação e fez com que quase todos engolissem um sapo do tamanho do Capitólio (por necessidades eleitorais, republicanos como Ted Cruz, Paul Ryan ou Marco Rubio tiveram que acabar por dizer tinham votado no nomeado do seu partido, mesmo tendo total incompatibilização de estilos com Donald).

“John McCain herói? Bem, ele foi capturado. Prefiro os ‘heróis’ que não sejam capturados”

“Rick Perry acha que por pôr uns óculos à intelectual fica mais inteligente. Mas não está a resultar!”

“Podia ver-se que lhe saía sangue pelos olhos. Tinha sangue a sair-lhe de… onde quer que fosse”
(sobre Megyn Kelly, jornalista da FOX, no debate televisivo)

Donald Trump, who else?

A caminhada impensável de Trump nesta eleição presidencial americana mostrou que, para muitos milhões de americanos, é mais atraente fruir o espetáculo do que acreditar na realidade. Seria patético, se não tivesse chegado tão longe.

Nada será como dantes.

Enquanto Hillary Clinton se desdobrava, em campanha, com as maiores estrelas do Partido Democrático (Barack Obama, Michelle Obama, Bill Clinton, Bernie Sanders, Elizabeth Warren), Donald fazia campanha de um homem só. Ele não tinha, nem queria, a companhia de figuras republicanas.

One Man Show.

Transformar fracassos em sucessos imprevistos

“Trump revela falta de caráter, valores e experiência para ser presidente. Ele acusa falta de legitimidade e autoridade para se assumir como líder do mundo livre. Mostra falta de conhecimentos básicos sobre a Constituição americana, as leis americanas, as instituições americanas, incluindo a tolerância religiosa, liberdade de imprensa e independência judiciária”
(excerto da carta que reuniu meia centena de antigos assessores e conselheiros de George W. Bush, e diversos elementos que trabalharam no Pentágono e no Departamento de Estado nas últimas administrações republicanas)

Donald John Trump é natural de Nova Iorque. Filho do empresário Fred Trump e de Mary Anne MacLeod, Donald Trump, nomeado como candidato presidencial republicana na Convenção de Cleveland, tem ascendência alemã, por parte dos avós paternos, e escocesa (a mãe nasceu em Stornoway, na Escócia, em 1912).

Casado pela terceira vez, a primeira mulher, Ivana, é checa, e a terceira e atual, Melania, é eslovena.

Multimilionário com um império na área dos media e do imobiliário, dono da Trump Organization e da Trump Entertainment Resorts, simboliza, para muitos, o sonho americano levado ao paroxismo.

TRUMP e pai

Donald Trump e o pai em Manhattan @D.R.

O pai, Fred, era um investidor imobiliário de média dimensão em Queens. Donald, que herdou dele o jeito para o negócio e ainda um chorudo empréstimo que o empurrou para o mundo dos investimentos, quis mais. O objetivo dele era Manhattan, o centro financeiro, o mundo de NY, recheado de oportunidades, atrações e visibilidade mediática.

O quarto filho de Fred e Mary Anne foi expulso, aos 13 anos, da Academia Militar, por mau comportamento. Primeiro na Universidade Fordham e depois na Warthon School, na Universidade da Pensilvânia, ficou com formação em gestão.

Mas o segredo do seu sucesso empresarial está nele. Numa ambição desmedida que, muitas vezes, não media o risco, mas que tinha quase sempre uma forma de sair dele de forma vantajosa.

Errático, excessivo, turbulento

Donald foi errático, excessivo e turbulento em tudo.

Na vida pessoal (três casamentos), nos negócios (vários sucessos, vários fracassos), na política (foi republicano nos anos 80, democrata nos anos 90, altura em que dizia muito bem dos Clinton, reformista em 2000 e de novo republicano nos anos mais recentes).

Trump with his first wife, Ivana, in 1988 on the Trump Princess, which he sold three years later

Donald Trump e a primeira mulher, Ivana, com quem teve a filha Ivanka @D.R.

Agora até perfumes tem. A Trump Network tira rendimentos da marca Trump nos mais variados produtos.

Abstémio, Donald dá o nome a garrafas de vodka. Um amigo chegou a perguntar-lhe: “Como, se não bebes álcool?”

Momentos que definem um perfil

Há inúmeros episódios mediáticos na vida pública e empresarial de Donald Trump. O mito de que Donald raramente falha um negócio está bem longe de corresponder à verdade.

Em 1988, os New England Patriots tinham uma dívida acumulada superior a 100 milhões de dólares. O clube estava à venda por um bom preço. Trump interessou-se, mas optou por não comprar. Fez mal: hoje o clube vale mais de 2,5 mil milhões de dólares.

Em novembro de 2015, participou no Saturday Night Live e isso deu a maior audiência em ano e meio ao programa de entretenimento da NBC: 9,3 milhões de telespetadores. Donald é sinal de espetáculo.

Já fez de ator vezes sem conta, entrando em filmes como “Zoolander” ou “Sozinho em Casa 2” ou “O Príncipe de Bel Air”.

E esta proximidade com o mundo da TV e do cinema fê-lo perceber que, para muita gente, ficção e realidade não são conceitos assim tão diferentes, desde que provoquem emoções e despertem sentimentos.

Donald joga com a perceção e desvaloriza a factualidade.

King of New York

O candidato das “vítimas do sistema” mora num triplex no topo da Torre Trump, em Nova Iorque. Usa o seu Boeing 757 particular mas… criticou o Presidente Obama por voar no Air Force 1 enquanto fazia campanha por Hillary.

O “pequeno empréstimo” dado pelo pai (pelo menos um milhão de dólares) serviu de empurrão para o início de uma carreira financeira e empresarial que o levou ao topo – mas com muitos baixos pelo meio. Em 1971, Donald assume os negócios dos Trump. E decide olhar mais para cima: o pai dedicava-se à construção imobiliária, ele apontou para o “big money” que circula em Manhattan.

Passou a apostar em torres cada vez as altas, compra de hotéis de luxo (entre os quais o Waldorf Astoria, que “ofereceu” à primeira mulher, Ivana), casinos, campos de golfe. Os anos 80 e inícios de 90 fizeram de Donald “king of New York”.

NEW YORK, NY - DECEMBER 21: US business tycoon Donald Trump(C) enters the PLaza Hotel in New York past supporters 21 December 1994. Hundreds of supporters showed up at a news conference where Trump denied a New York newspaper report that the Sultan of Brunei had bid 300 million USD to buy the Manhattan hotel. (Photo credit should read DON EMMERT/AFP/Getty Images)

Donald Trump em 1994 @DON EMMERT/AFP/Getty Images

Diversificou apostas, meteu-se a comprar companhias aéreas. E depois mais casinos. Em Atlantic City, adquire um império, promete ressuscitar a indústria de casinos, chega a comprar à família Crosby o casino Taj Mahal.

Em 1987, no livro “The Art of the Deal”, conta os segredos do seu sucesso empresarial. O livro ficou 48 semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times.

Padrão: ser o centro das atenções

Donald Trump está há décadas no centro das atenções. E quase sempre por más razões. Foi alvo de inúmeros processos judiciais relacionados com negócios e investimentos.

Recusou-se, enquanto candidato presidencial, a divulgar os seus rendimentos, tendo-se até gabado de não ter pago impostos federais durante anos, por ter declarado prejuízos de 916 milhões de dólares em 1995. “Foi bom para as minhas empresas. Fui inteligente”, atirou.

Na vida pessoal (três casamentos), nos negócios (vários sucessos, vários fracassos), e na política (foi republicano nos anos 80, democrata nos anos 90, altura em que dizia muito bem dos Clinton, reformista em 2000 e de novo republicano nos anos mais recentes), tem repetido um padrão de instabilidade e turbulência.

Master media

A chave para o perceber está na mestria com que domina os ciclos mediáticos. Como é capaz de chamar para si os focos de atenção, não se importando que estejam a dizer mal dele. “Donald é a prova mais evidente de que má publicidade acaba por se tornar, ao fim de um certo tempo, boa publicidade”, insiste Dan Balz.

“Que raio têm vocês a perder? Deem-me uma oportunidade”
Donald Trump, em comício, para os afro-americanos e latinos

“Vamos construir um grande muro. O muro vai ser pago pelo México. Não vão conseguir cavar túneis, porque teremos tecnologia de ponta a prevenir túneis. Vai ser um grande muro, seguro. As drogas vão parar de entrar nos nossos estados, vão deixar de envenenar os nossos jovens e outras pessoas. Vai haver todo o tipo de verificação, as pessoas não vão conseguir entrar nos EUA de forma ilegal. Agora, é uma piada, as grades têm altura muito baixa. Vamos construir um grande muro e muito seguro. No meu primeiro dia como presidente, vou notificar as forças de fronteira a mandar embora os tipos maus. Todos sabemos quem são. A polícia sabe quem eles são. Eles são só problemas, não são mais do que isso. Vamos acabar com as cidades-santuário. O primeiro documento que vou assinar na Sala Oval vai dizer ‘expulsem os tipos maus deste país’.”
Donald Trump, entrevista a Anderson Cooper na CNN

“Uma presidência Trump seria um insulto ao meu legado”
Barack Obama

“Trump tem uma alma sombria e feia”
Elizabeth Warren

“Não há desculpas para Donald Trump. Para os seus comentários ofensivos e repugnantes. Nenhuma mulher deverá sofrer deste tipo de comportamento inapropriado. Ele, e apenas ele, deverá carregar o fardo da sua conduta e deve sofrer as respetivas consequências”
John McCain, nomeado presidencial republicano em 2008, declaração em que retira apoio formal a Trump

“Lamento ter trabalhado para ele e nunca votaria nele”
Pratick Chougule, antigo coordenador político da campanha de Donald Trump

Lá está, ninguém fica indiferente a Donald Trump.

Há quem diga que ele encontrou, neste ciclo presidencial de 2016, uma excelente hipótese de multiplicar o valor da sua marca.

Que a sua ideia inicial nem seria a de chegar à Casa Branca. Que as tiradas inacreditáveis que lançou no ato de declaração da sua candidatura às primárias republicanas revelariam a sua total descrença de que pudesse chegar à nomeação, quanto mais à presidência.

Que o que ele pretendia mesmo era sair disto tudo com espaço e público para lançar uma Trump TV, versão ainda mais insana do extremismo da direita americana do que está a ser a FOX News.

Mas a verdade é que ele foi resistindo. E resistindo.

O percurso de Trump nestas presidenciais terá sido o primeiro exemplo de uma política “post truth”, em que a verdade deixou de ter importância formal.

A quantidade de mentiras e informações incorretas que o nomeado republicano produziu em todo o processo, sobretudo nos três debates, e o modo como foi sobrevivendo politicamente com isso, terá aberto uma nova página no modo de construir uma candidatura presidencial na América.

https://youtube.com/watch?v=14HDAuZL1gk

Ben Carson, um dos poucos candidatos nas primárias republicanas que esteve toda a disputa contra Hillary e com Trump, bem que tinha avisado: “As propostas que Donald Trump fez durante as primárias já não interessam para nada. Isto agora é a eleição geral.”

“Donald Trump é vago nos assuntos e vulgar com as mulheres”
Maureen Dowd, artigo no New York Times

“Pus baton num porco. Estou arrependido”
Tony Schwartz, ‘ghostwriter’ do livro “The Art of the Deal”, biografia de Donald Trump

“Donald Trump não faz ideia do que é ser Presidente dos Estados Unidos. Tomar decisões a este nível é muito difícil. Isto não é ‘reality TV’.”
Barack Obama

“Mesmo que não gostem de mim, vão ter de votar em mim.”
Donald Trump, em recado aos republicanos que o olham com muitas reservas

“Donald Trump é uma desgraça nacional.”
Colin Powell, Secretário de Estado na primeira administração George W. Bush

Na Convenção Democrática de Filadélfia, no final de julho, o Presidente Obama avisava: “Ronald Reagan chamou à América uma cidade luminosa construída sobre uma colina. Donald chama-lhe a cena de um crime que só ele conseguirá resolver. Acha que se assustar pessoas suficientes talvez consiga os votos suficientes talvez consiga os votos para ganhar as eleições. E é por isso que Donald Trump as vai perder. Porque ofereceu pouco aos americanos. Nós não somos um povo frágil. Nós não somos um povo medroso.”

“O nosso poder”, apontava Obama, ao seu estilo, “não vem de autoproclamados salvadores prometendo restaurar a ordem desde que façamos as coisas à sua maneira. Não queremos ser dirigidos. O nosso poder vem daquelas imortais declarações postas no papel aqui em Filadélfia há tantos anos: ‘Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais’, que ‘nós, o Povo’, conseguimos formar ‘uma União mais perfeita’. É isto que nós somos. Com a capacidade de decidir o nosso próprio destino. E foi isso que levou os patriotas a escolher a revolução contra a tirania. Foi isso que deu às mulheres a coragem para se baterem pelo seu voto, aos manifestantes para atravessarem a ponte de Selma e aos trabalhadores para se organizarem pela negociação coletiva e melhores salários. A América nunca foi sobre o que uma pessoa diz que pode fazer por nós, é sobre o que pode ser conseguido por nós. Através do difícil, longo e por vezes frustrante trabalho de autogoverno. Quem ameaça os nossos valores, sejam fascistas, comunistas, jiadistas ou demagogos, perde sempre no fim. Sempre.”

Donald Trump apresentou uma perspetiva, nesta eleição, “dark”, negativa, pessimista e quase assustadora do momento atual dos EUA.

O presidente eleito traçou um retrato de uma América pior do que, na verdade, ela é neste momento. Jogou com o medo (carta poderosa em tempos de incerteza e indefinição, como os que vivemos), associou a imigração e os refugiados com o crime e a insegurança, prometendo ser o presidente “da lei e da ordem”, embora sem explicar muito bem como.

E no fim, quase todos perguntam: como é que se chegou a isto?

* Germano Almeida é jornalista; autor dos livros “HILLARY CLINTON – Nunca é Tarde para Ganhar” (novembro 2016), “Por Dentro da Reeleição” (abril 2013) e “Histórias da Casa Branca” (maio 2010)