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Paul Auster: 4 3 2 1 = Zero

"4321" representa um novo paradigma para o autor americano, aguçado como uma faca de dois gumes e que pode "magoar o leitor desprevenido de duas maneiras diferentes", escreve Rogério Casanova.

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Então e ares condicionados?

Qual foi a última ocasião em que reflectimos sobre ar condicionado? Temos sequer uma opinião formada sobre ar condicionado? Alguma vez pesámos seriamente os prós e os contras do ar condicionado?

Num dado momento da sua quase infinita infância, o tetra-protagonista de 4321, Archie Ferguson, cai de uma árvore, parte uma perna, e fica algumas semanas acamado, com tempo suficiente para fazer o trabalho sujo por nós:

“Sim, o ar condicionado refrescava o quarto e diminuía os espirros, e como estava mais fresco não tinha tanta comichão na perna, debaixo do gesso, mas viver numa câmara frigorífica também tinha inconvenientes, antes de mais o barulho, que era um barulho estranho e desconcertante, pois havia vezes em que o ouvia e outras que não, mas quando o ouvia achava-o monótono e desagradável, mas pior do que isso era a questão das janelas, que tinham de ficar fechadas para impedir o ar fresco de sair, e porque estavam permanentemente fechadas e o motor não parava de trabalhar, não conseguia ouvir os pássaros fora da janela, o cantar, chilrear e gorjear dos pássaros, que faziam o que Ferguson considerava os sons mais bonitos do mundo. O ar condicionado tinha as suas vantagens e inconvenientes, portanto, os seus benefícios e dificuldades, e, tal como muitas outras coisas que o mundo lhe deu no decurso da sua vida, era, como a mãe muitas vezes dizia, uma faca de dois gumes”.

Estamos na página 58. Temos 811 pela frente.

“4 3 2 1”, de Paul Auster (Asa)

Pode dizer-se muita coisa sobre os livros anteriores de Paul Auster, mas nunca costumávamos ter 811 páginas pela frente. Ter 811 páginas pela frente é claramente um novo paradigma, e como todos os novos paradigmas, este tem as suas vantagens e inconvenientes, portanto, os seus benefícios e dificuldades. O novo paradigma é, pode dizer-se, uma faca de dois gumes, forjado na familiar troposfera Austeriana, mas aqui submetido a uma violentíssima reconfiguração (efectuada por uma técnica revolucionária, que consiste na abordagem puramente contabilística à narração retrospectiva), e suficientemente aguçado para magoar o leitor desprevenido de duas maneiras diferentes.

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4321 aparenta ser o ponto terminal de uma contagem decrescente há muito anunciada. Mas, como diria uma personagem de Auster, é melhor começarmos pelo princípio.

Escolha múltipla

“No princípio havia apenas o evento e as suas consequências”. A doutrina é solenemente enunciada no primeiro parágrafo da Trilogia de Nova Iorque e, não sendo a síntese correcta, é um bom ponto de partida para descrever o princípio organizador dos melhores (ou menos maus) livros de Auster, em que efeito e consequências tinham uma ligação ténue, a causalidade era um assunto precário, e as componentes individuais funcionavam melhor que a sua soma aritmética.

O horóscopo é estável, os signos recorrentes: personagens que mudam de nome, ou desaparecem subitamente, ou recebem uma herança inesperada. Cidades abstractas, embora muitas vezes disfarçadas de Nova Iorque. Reencontros acidentais – com parentes perdidos ou amigos de infância. Actos triviais com consequências sísmicas. Sósias; ecos; histórias dentro de histórias. Um quarto fechado, uma escrivaninha, uma folha de papel em branco. Um desenlace coreografado como um cancelamento abrupto ou uma inversão titubeante. Pessoas que estiveram a observar outras pessoas descobrem que na realidade estiveram a observar-se a si próprias. Ou será que estiveram? Alguém que começou a escrever uma história descobre que a história que vai escrever é na verdade a história que estamos a ler. Ou será que é?

Na fase mais recente da sua carreira, que inclui esse impressionante hat-trick de auto-paródias – As Loucuras de Brooklyn, Viagens no Scriptorium, Homem na Escuridão – Auster começou a semear opções de escolha múltipla com acrescida displicência. O protagonista de Viagens no Scriptorium não sabe como chegou ao sítio onde se encontra. “Talvez sempre tenha estado aqui; talvez este seja o local onde vive desde o dia em que nasceu”. Sim, talvez… ou talvez não. Em Homem na Escuridão, já nem os apelidos são fiáveis: o nome do criador-demiurgo é Brill… mas também “poderá ser Blake. Poderá ser Black. Poderá ser Bloch”. A progressão é suficientemente intrigante para induzir a contra-adivinhação do leitor (poderá ser Bloom? Blitz? Blergh? Batman? Beckham? Bino!). Qualquer fórmula, detectivesca ou não, implica-nos necessariamente numa série de simplificações e implausibilidades estruturais, mas quando é alistada na causa da “Arte”, o mínimo que se exige é a certeza de que existe alguém na torre de vigia, e que o controlo executivo da inteligência narrativa não se limite a dizer-nos ¯\_(ツ)_/¯ .

As pessoas gostam de ler livros de Paul Auster porque os seus livros são, em certa medida, sobre gostar de ler livros. A sua reduzida constelação de enredos combina frequentemente a promessa de mistério e acção implícita no thriller com a monotonia sedentária das rotinas de leitor e de escritor.

O protagonista do seu primeiro romance, Quinn, elogia “a economia das histórias de detectives”, em particular o facto de “cada palavra, cada frase, ter um significado, ou pelo menos o potencial para significar”. Foi nesse “potencial” que Auster encontrou a sua idiossincrática apólice de seguro. Como outros contemporâneos mais talentosos, apropriou um modelo genérico (o enredo policial) e enfeitou-o com as posturas superficialmente exóticas do avant-garde europeu, que interpretou como caução para não ter de explicar, ou sequer compreender, o próprio material. Temas portentosos são agitados à nossa frente, e rapidamente desdramatizados. Nada faz grande sentido, porque não precisa de fazer. É a versão homeopática do experimentalismo: os seus tropos e mecanismos aplicados por alguém que uma vez bebeu um copo de água enquanto pensava em Samuel Beckett.

E no entanto, a espaços (em A Música do Acaso, digamos, e no incaracterístico Leviathan, e talvez em dois terços da Trilogia), a coisa conseguia funcionar, e conquistar o interesse provisório do leitor com mortífera eficiência. Em parte porque Auster tem (ou teve) a habilidade inata do contador de histórias para garantir este consentimento semi-anestesiado. A fluência no alinhamento de episódios invulgares, e a militante despreocupação com uma exploração temática mais assídua, cria uma intimidade narcotizante: o autor e o leitor, os dois juntinhos e unidos no acto de não prestar muita atenção. A intensa legibilidade dessas ficções mais bem sucedidas reside nisto: temos muito mais interesse em saber o que acontece na página seguinte do que temos na página que estamos a ler agora.

Outro factor mais esotérico, e mais difícil de comprovar, é a clandestina congratulação que oferecem a um certo tipo de identidade fundada no consumo compulsivo de literatura. Paul Auster gosta claramente de ler livros. E gosta claramente de ser uma pessoa que gosta de ler livros. E as pessoas gostam de ler livros de Paul Auster porque os seus livros são, em certa medida, sobre gostar de ler livros (como são, de maneiras muito diferentes, os livros de Bolaño, por exemplo, ou de Ana Teresa Pereira). A sua reduzida constelação de enredos combina frequentemente a promessa de mistério e acção implícita no thriller com a monotonia sedentária das rotinas de leitor e de escritor – em que nada acontece durante dias ou meses a fio, mas no fim de contas há uma leitura terminada ou um manuscrito completo. E, pelo caminho, vamos tendo um sortido de alusões gratuitas (Thoreau! Hawthorne! Apollinaire!) e um clamoroso fetichismo dos próprios materiais de escrita (parágrafos elegíacos sobre máquinas de escrever, cadernos de argolas, blocos de notas, o “mistério da página em branco”, etc).

E depois há o acaso, o culto da coincidência, da sincronicidade – um tropo central da ficção realista desde o séc. XIX, mas que Auster reduz a um maneirismo vazio. Uma personagem de O Palácio da Lua decide, por nenhum motivo aparente, contar todos os livros na sua biblioteca, e chega ao número 1492, que por acaso é a data histórica da descoberta do – enfim. (Suspeita-se que, confrontada com a velha piada sobre um relógio parado mostrar a hora certa duas vezes por dia, a típica ficção de Auster reagiria com um entusiástico “Pois é! Que coincidência!”)

Escolha-se um livro de Paul Auster ao acaso, abra-se uma página ao acaso, e há uma modesta probabilidade de encontrarmos uma reflexão sobre a natureza do acaso, ou até mesmo a palavra “acaso”. O autor do presente texto fez a experiência (o livro saído da prateleira foi, por acaso, A Música do Acaso). Mas a página escolhida ao acaso não devolveu uma frase sobre o acaso, nem a palavra “acaso”, mas sim – com uma impenitência Austeriana – uma frase contendo a expressão “ar condicionado”: “Nashe desligou o candeeiro, fechou os olhos e ficou a ouvir o zumbido do ar condicionado até deixar de o ouvir.” É razoável; e é tudo: o capítulo acaba pouco depois e o leitor descobre com alívio que tem apenas cento e poucas páginas de frases curtas pela frente. Bons tempos.

Contabilidade literária

Há várias justificações para o número de páginas de 4321 – que tem o quádruplo das páginas do típico livro de Auster – mas a principal é esta: embora promovido como um romance, na verdade é um quadripartido bildungsroman narrando quatro versões alternativas da infância, adolescência e início da idade adulta de Archibald Ferguson. Depois de um prólogo ilusoriamente promissor (as primeiras quatro ou cinco páginas serão as menos insultuosas da obra inteira) sobre a chegada a Ellis Island de um emigrante do Velho Mundo e a consequente fundação de uma dinastia americana, as linhas temporais divergem e vão-se acumulando em cachos numerados de capítulos – um dos Archies tem direito aos capítulos 1.1, 2.1, 3.1, outro aos 1.2, 2.2, 3.2 e assim sucessivamente.

Para alguém tão inebriado com a mistificação do acaso, a ideia deve ter parecido irresistível: o mecanismo perfeito para explorar os velhos mistérios da causa inócua e da consequência fatídica. É possível que em nenhum momento tenha ocorrido a Auster que a fantasia específica alimentada pelos seus enredos – a fantasia de liberdade, de possibilidade infinita, de descarte identitário automático – costuma colonizar muitas horas de vigília na maioria dos seres humanos (e se eu tivesse feito isto em vez de aquilo?), mas que o frisson se dissipa obrigatoriamente no momento em que a evocação de opções múltiplas é formalmente reduzida a uma única história específica – razão pela qual o sugerir, protelar e cancelar de sucessivas sub-histórias era o seu modelo narrativo instintivo e preferencial.

Mas o que acontece em 4321 (por desígnio ou por acaso) não é essa quádrupla proliferação de histórias, mas a agregação patológica de diferenças indiferentes. Onde antes havia evasão, agora há acumulação. Onde antes havia um fluido défice de significado, agora há um pantanoso superavit denotativo. Pelo menos num sentido, 4321 é o romance mais ostensivamente experimental que Auster escreveu na carreira: um romance constituído por tudo aquilo que a gramática tradicional da ficção omite – e cuja omissão qualquer leitor foi treinado a esperar.

As convenções literárias habituaram-nos a omissões estratégicas, a critérios de selecção, a intuir o todo pelas partes, a preencher espaços em branco, a completar esqueletos cronológicos, a aceitar que capítulos de trinta páginas representem uma hora, ou que trinta dias passem numa frase (“um mês depois”, etc). Mesmo no livro mais abertamente formulaico ou incompetentemente melodramático, o leitor reconhece os artifícios em jogo e vai calibrando concentração e expectativas de forma a cumprir a sua parte da tarefa.

Isto não é normal; e isto não é interessante, excepto do ponto de vista psiquiátrico. "4321" utiliza as operações da memória não para evocar, mas num espírito de alucinada preparação documental. É menos narrativa do que o espectáculo de um obsessivo-compulsivo a reunir a papelada necessária antes de uma auditoria.

Um romance normal pode sugerir que uma criança sente a ausência constante de um pai demasiado dedicado ao seu trabalho, e inventar um episódio específico para o dramatizar. O que 4321 faz é isto:

“O tio Don (…) já não vivia com o filho e só o via de longe a longe, um fim de semana todos os meses, duas semanas no verão, apenas trinta e oito dias por ano, mas quando Ferguson fez os cálculos de cabeça, percebeu que embora visse o pai mais vezes – cinquenta e dois domingos por ano, para começar, juntamente com os jantares de família nas noites em que o pai não chegava tarde do trabalho, mais ou menos metade das noites da semana, o que corresponderia a cerca de cento e cinquenta jantares, de segunda a sábado, muito mais contacto do que o filho do tio Don tinha com o pai – havia um senão, pois o novo primo por afinidade de Ferguson via sempre o pai sozinho naqueles trinta e oito encontros anuais, ao passo que Ferguson” e assim por diante, até ao fim de um parágrafo que termina com a seguinte e triunfante operação matemática: “… Outubro de 1954, há um sexto da sua vida, e subtraindo os primeiros três anos da sua vida, que já não conseguia activamente recordar, há quase um quarto da sua vida, o equivalente a dez anos para um homem de quarenta e três anos, pois nesta altura da história Ferguson tinha nove anos”.

Está nesta altura irrefutavelmente estabelecido que Ferguson não passa o tempo desejável na companhia do pai, e que tem nove anos. Mas que idade, exactamente, é que Auster acha que nós temos?

Esta insana contabilidade é o principal motor do romance. Um dos Ferguson aprende a ler em casa, com o avô: “as aulas (…) estavam divididas em três partes, noventa minutos de escrita de manhã, seguidos de um intervalo para almoçar, noventa minutos de leitura de tarde e então, depois de mais uma pausa, quarenta e cinco minutos a ler-lhe em voz alta enquanto se sentavam os dois no sofá do alpendre”. Outro Ferguson vai para a escola, onde aprende natação (“duas sessões de trinta minutos por dia, uma antes do almoço e uma antes do jantar”) e participa em jogos de baseball (“aconteciam duas vezes por semana, um ao sábado de manhã ou à tarde e o outro à terça ou à quinta-feira ao final do dia”). Uma nova amizade é registada nestes termos empolgantes: “Viam-se raramente, claro, dado que um vivia em Nova Iorque e outro em New Jersey, e como Noah estava potencialmente disponível apenas trinta e oito dias por ano, tinham estado juntos apenas seis ou sete vezes nos dezoito meses posteriores ao casamento”.

Transições narrativas básicas adoptam o mesmo método: “Anos passaram. Ferguson fez dez, onze e doze, fez treze e catorze anos, e entre os eventos familiares que ocorreram durante esses cinco anos, o mais importante foi sem dúvida o casamento da mãe… que ocorreu quando Ferguson tinha doze anos e meio”. O novo padrasto deste Ferguson “não se interessa por desporto”. Temendo que não estejamos esclarecidos, Auster enumera os desportos pelos quais o padrasto de Ferguson não se interessa: “nem baseball nem futebol, nem basquetebol nem ténis, nem golfe nem bowling nem badmington”. E elabora o problema: “Não só que ele próprio não praticasse nenhum destes desportos, mas também que nunca olhasse sequer para as páginas de desporto, o que queria dizer que não prestava atenção aos altos e baixos das equipas profissionais locais, para não falar nas equipas universitárias e de liceu, e ignorava as proezas de todos os corredores, lançadores de peso, saltadores em altura, saltadores em comprimento, fundistas, golfistas, esquiadores, jogadores de bowling e tenistas do mundo”.

Os vários Ferguson crescem e apaixonam-se, quase todos por uma rapariga chamada Amy. Um deles formula um audacioso plano para ir ter com ela de autocarro: “o plano era partir de Nova Iorque assim que a escola acabasse, e se tivesse a sorte de apanhar o primeiro autocarro, estaria no apartamento de Amy às quatro e meia ou cinco menos um quarto, e se não apanhasse o primeiro autocarro e tivesse de apanhar o segundo, às cinco e meia ou seis menos um quarto”. Outro troca com ela cartas de amor; não as lemos (felizmente), mas sabemos que “nos sessenta e dois dias desde a partida, Ferguson tinha escrito a Amy catorze cartas” e também que “Amy, por sua vez, tinha enviado cinco cartas e onze postais”.

Um dos Ferguson vai estudar para Columbia (“17500 alunos”), outro para Princeton; ambas são palco de lutas estudantis (“setecentas e vinte pessoas detidas, quase cento e cinquenta feridos participados”). Ferguson é menos participante do que testemunha, embora sofra um ferimento na mão (“onze pontos”).

Um Ferguson joga basquetebol em vez de baseball (“nove semanas de jogos, dezoito jogos no total, um na terça à tarde e outro na sexta à noite, metade dos jogos em casa e a outra metade nos campos de outras escolas”) e marca, aparentemente, alguns pontos (“capaz de marcar dez ou doze pontos quando estava com a pontaria afinada ou dois pontos ou nenhum ponto quando não estava. Daí os sete pontos que marcou no primeiro jogo, o que acabou por ser a média dele naquela época, mas com jogos de apenas trinta e dois minutos e os totais de pontuação algures entre os trinta e cinco e os quarenta e cinco para cada equipa, sete por jogo não era nada mau”). No meio do calendário desportivo, arranja tempo para dormir com Amy: “em geral, acabava por passar a noite com ela, em média quatro ou cinco noites por semana, muitas vezes até seis, com uma ou duas ou por vezes três noites sozinho”

O único Ferguson que não ingressa no ensino superior opta por uma temporada de boémia em Paris, onde se torna cinéfilo. Somos informados de que viu bastantes filmes: “Uma média de dois cada sábado e domingo e outro à sexta, o que dava um total de mais de trezentos – umas boas seiscentas horas sentado no escuro, ou o número de tiques do relógio repetidos no decurso de vinte e cinco dias e noites consecutivas, e subtraindo-se os minutos perdidos para o sono e diversos desmaios inebriados, mais de um mês da sua vida de vigília durante os quinze meses que tinham passado”. Em Paris também fuma (“mais de mil cigarros”) e bebe (“trezentos copos do melhor produto da Escócia”).

Entretanto, o Archie 4.0 começa por escrever contos (“nos seus três anos como aluno de liceu, então com dezasseis, dezassete e dezoito anos, começou vinte e sete contos, terminou dezanove”), antes de completar o primeiro livro (“todas as cento e trinta e uma páginas com espaçamento duplo”). O manuscrito recebe depois o devido tratamento editorial: “conseguiu converter as cento e trinta e uma páginas com espaçamento duplo do manuscrito em cinquenta e nove páginas de espaçamento simples eliminando os espaços em branco que precediam cada título de capítulo das vinte e quatro”, etc, etc, etc.

Alguns acontecimentos históricos são recapitulados. A guerra do Vietname: “Juntamente com um carregamento de quarenta helicópteros, quatrocentos soldados americanos tinham chegado ao Vietname do Sul. Outras aeronaves, veículos de terra e embarcações anfíbias estavam a caminho. No total, havia agora dois mil americanos uniformizados no Vietname do Sul, em vez dos 685 membros do grupo consultivo militar anunciados oficialmente”. A marcha de Selma: “duzentos agentes da polícia estadual do Alabama atacaram 525 manifestantes pelos direitos civis.” Os tumultos de Newark: “vinte e seis pessoas mortas, setecentas pessoas feridas, mil e quinhentas pessoas detidas, novecentas lojas destruídas, dez milhões de dólares em danos materiais”; e a respectiva reacção das autoridades: “A Guarda Nacional e a polícia estadual dispararam treze mil munições”.

Se houvesse alguma indicação de que 4321 sabe o que raio está a fazer, o leitor poderia identificar nos interstícios desta contabilidade organizada algum material promissor. Mas tudo o que emerge é acidental, todo o tiro no alvo é um ricochete.

O livro ensaia voluntariamente alguns cataclísmicos momentos de humor (incluindo uma excruciante fantasia sobre peidos e cowboys reciclada de Viagens no Scriptorium), mas a única gargalhada genuína ocorre quando um dos Ferguson vai a uma consulta de esterilidade, e o leitor adivinha a inevitável contabilidade a meia página de distância: “o Dr. Breuler disse-lhe que era um problema que só afectava sete por cento da população masculina, mas uma contagem de espermatozoides mais baixa do que o normal comprometia seriamente a capacidade de um homem para ser pai, isto é, menos de quinze milhões de espermatozoides por mililitro de sémen ou uma contagem total de menos de trinta e nove milhões por ejaculação, e os números de Ferguson estavam consideravelmente abaixo disso”.

Isto não é normal

A nauseante acumulação de citações é suficiente, espera-se, para ilustrar o óbvio: isto não é normal; e isto não é interessante, excepto do ponto de vista psiquiátrico. 4321 utiliza as operações da memória não para evocar, mas num espírito de alucinada preparação documental. É menos narrativa do que o espectáculo de um obsessivo-compulsivo a reunir a papelada necessária antes de uma auditoria.

No seu melhor, a prosa de Auster vacilava entre o hipnótico e o soporífero, sem fricções e sem surpresas. Há fricções em 4321, e bastantes surpresas – nenhuma delas agradável. A superfície verbal do texto é uma longa procissão de redundâncias (a primeira experiência masturbatória de Ferguson motiva uma expedição ao dicionário de sinónimos: “Era óbvio que o actor central neste drama era a sua virilha. Ou, para remontar à terminologia dos antigos hebreus, o seu baixo-ventre. Ou seja, as suas partes, que na literatura médica eram geralmente designadas por órgãos genitais”), metáforas anatomicamente confusas (“cujo principal objectivo na vida era enfiar o pénis no corpo de uma rapariga nua e pôr a sua virgindade para trás das costas”), e inexplicáveis hipérboles: Thoreau era “um escritor de sublime clareza e precisão, um criador de frases tão belamente construídas que Ferguson sentia a sua beleza como alguém sente um soco no queixo”. (O bitaite literário nunca se eleva acima deste nível: “Tolstoy era muito comovente” e Flaubert “escrevia as melhores frases da criação”).

E isto – isto – passa por uma cena de sexo:

“A ligação de corpos. Corpos inquietos e corpos lânguidos, corpos mornos e corpos quentes, corpos de nádegas, corpos húmidos, corpos de pila e rata, corpos de pescoço e corpos de ombro, corpos de dedos e corpos de dedos a acariciar, corpos de mão e lábio, corpos a lamber, e sempre e em todos os momentos corpos de rostos, os seus dois rostos a olhar um para outro dentro e fora da cama”

Nenhum tema, evidentemente, pode sobreviver neste risível universo. A pobreza linguística e estrutural, e o desinteresse do autor em tudo aquilo que não seja quantificável, combinam fatalmente para o despovoar. Dezenas de personagens secundárias são baptizadas, apenas para se verem reduzidas a insípidos semáforos adjectivais: “o elusivo Benjy Adler”, “o sonhador Bob Kramer”, “o pugnaz Mark Dubinsky”, “a melíflua Rachel Minetta”, “a lesta Joanna”, “o afável Dan”, “o fogoso Jim”. Com alguma sorte (e algumas curvas), podem ter direito a dois adjectivos: “a cáustica e espirituosa Nancy”, “a rechonchuda e jovial Mary”, “a esguia e pensativa Ann Brodsky”, “a fogosa e peituda Carol Thalberg”.

As iterações de Archie Ferguson consomem todo o oxigénio disponível, e a principal função do resto do elenco é reconhecer a excelente pessoa que ali, invariavelmente, se encontra. Desde os tempos áureos de Henry Miller que um protagonista não era tão extravagantemente elogiado por todos os que o rodeiam.

Uma colega: “Anne-Marie fixou os seus olhos nos dele e acenou com a cabeça. És um rapaz inteligente, Archie, disse ela. Sabes dez vezes mais do que dez destes americanos idiotas juntos”.

Um treinador de basquetebol: “Percebes o que quero dizer, Ferguson? Tu és demasiado bom”

Uma prostituta: “Gosto de ti, Archie, disse. És um rapaz bem-parecido, com uma pila bonita”.

O primeiro editor: “Sabes, Archie, eu cheguei à conclusão de que tu és uma pessoa distinta da maioria das outras pessoas, uma pessoa especial. Senti isso quando li o teu manuscrito, mas agora que te conheci cara a cara, tenho a certeza”

Uma espécie de mecenas: “és a pessoa mais estranha e engraçada que já conheci”

Uma amante: “Não, Archie, disse ela, tu não és como os outros. És o primeiro homem que não tem medo de mim. É uma coisa notável, na realidade, e estou a tentar vivê-la o mais plenamente possível, porque no fundo tu sabes e eu sei que não vai durar”.

Tudo isto é reconhecível: como autobiografia deslocada – e como hagiografia inconsciente.

Por um lado é compreensível que Auster se desse ao trabalho de organizar estas sessões esporádicas de elogios, pois o leitor nunca chegaria lá sozinho. Nenhum Archie Ferguson chega a assumir a densidade que o emancipe das suas microscópicas circunstâncias alteradas, pois as circunstâncias existem apenas como tabela para posicionar estrategicamente a correctíssima inevitabilidade do protagonista em todas as suas versões, que vê o seu espectro de possibilidades e destinos diminuído não por acontecimentos históricos ou acidentes fortuitos, mas apenas por duas pressões convergentes: a biografia do autor – e a sua bibliografia passada. As coisas acontecem para que os vários Archie Ferguson possam comportar-se exactamente como fantasmas diluídos de Paul Auster.

Se houvesse alguma indicação de que 4321 sabe o que raio está a fazer, o leitor poderia identificar nos interstícios desta contabilidade organizada algum material promissor: as fragilidades do liberalismo americano, a hesitante e bem intencionada condescendência dos baby boomers. Mas tudo o que emerge é acidental, todo o tiro no alvo é um ricochete: é como se os temas ganhassem vida própria, e decidissem manipular um autor incompetente para contrabandearem fragmentos moribundos para dentro de um texto sem porteiros ou sentinelas. A oclusão do ego artístico, e o seu complacente narcisismo, foi o único estilhaço que sobreviveu desta explosão inadvertida, para contar a história secreta que o autor nunca chegou a reconhecer.

O mínimo que se pode fazer a 4321 é avaliá-lo nos seus próprios termos. O livro tem 870 páginas. Cada página tem em média 2800 caracteres. A esperança média de vida é 80,37 anos. É fazer as contas.

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