A decisão do Governo português de retirar os territórios de Uruguai, Jersey e Ilhas de Man da lista negra dos paraísos fiscais marcou mais um debate quinzenal. Desta vez, foram os sociais-democratas a pressionarem António Costa a revelar se, de facto, a Autoridade Tributária tinha ou não emitido um parecer no sentido de validar esta decisão.

A pressão do PSD tem uma razão de ser: quando foi ouvido no Parlamento português, Mário Centeno assumiu que o fisco foi ouvido e envolvido em todo o processo, sugerindo — pelo menos assim parecia — que os responsáveis pela Autoridade Tributária tinham dado luz verde à decisão. No Parlamento Europeu, no entanto, Fernando Rocha Andrade, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, garantiu que a aquela entidade não tinha emitido qualquer parecer.

A aparente contradição fez soar os alarmes de PSD e CDS, que foram rápidos em lançar a dúvida, dando a ideia de que alguém estaria a mentir em todo o processo, exigindo ter acesso ao tal parecer que Centeno sugeriu existir. Luís Montenegro, líder da bancada parlamentar do PSD, voltou a trazer o tema ao debate quinzenal e desafiou António Costa a esclarecer tudo. O primeiro-ministro respondeu ao ataque, dizendo que os sociais-democratas se entretinham com jogos de palavras. Afinal, quem tem razão?

O que está em causa?

Primeiro, o diálogo entre Luís Montenegro e António Costa. O líder da bancada parlamentar do PSD iniciou a sua intervenção sobre este tema perguntando muito claramente se “houve ou não houve parecer da Autoridade Tributária” para que estes territórios saíssem da lista negra dos paraísos fiscais.

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O primeiro-ministro respondeu apenas:

Saíram porque passaram a cumprir os critérios de cooperação e de acordo com o envolvimento da Autoridade Tributária nessa decisão.”

Segunda ronda. Montenegro pegou na deixa do socialista e devolveu a pergunta: “Objetivamente podemos então concluir que a Autoridade deu parecer sobre essa saída?“. Costa respondeu paulatinamente: “A Autoridade Tributária foi ouvida no processo de decisão.”

Terceira ronda, insistência do social-democrata: o facto de a Autoridade Tributária ter sido envolvida “significa que houve parecer ou não?”. O primeiro-ministro respondeu e foi mais longe: “A Autoridade Tributária foi ouvida, envolvida, pronunciou-se e foi com base nisso que o Governo tomou uma decisão.”

A resposta não satisfez Montenegro que insistiu na suposta contradição entre ministro das Finanças e secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Não é a primeira vez que um secretário de Estado do Ministério das Finanças contradiz aquilo que disse o ministro das Finanças. No seu Governo há completa impunidade? Cada um diz o que quer?”.

O líder socialista rematou a questão, desvalorizando a insistência do PSD. “Registo como um grande elogio centrar este debate num jogo de palavras entre consulta e parecer entre secretário de Estado e ministro. Não tem mais nadinha para perguntar a não ser um jogo de palavras entre consulta e parecer? Até eu que sou o primeiro-ministro irritantemente otimista era capaz de imaginar várias perguntas difíceis para pôr ao Governo”, afirmou Costa. Montenegro deixaria cair o tema, mas ficava a pergunta: afinal, Centeno e Rocha Andrade entraram contradição?

Quais são os factos?

A 24 de maio, no Parlamento português, Mário Centeno foi questionado pela deputada do CDS Cecília Meireles sobre a saída dos três territórios da lista negra dos paraísos fiscais. A resposta do ministro das Finanças pode ser dividida em quatro partes:

Disse Centeno: “A retirada de países dessa lista é uma ação coordenada com a Autoridade Tributária e é um estudo que é feito do cumprimento de todas essas exigências. E a informação que tenho é que todos esses territórios, todas essas jurisdições cumprem esses requisitos.”

O ministro continuaria: “Aquilo que lhe posso garantir é que o Centro de Estudos Fiscais, a Autoridade Tributária, a análise que foi feita dessas jurisdições levou à conclusão de que elas estariam em condições, estavam em condições, de cumprir essa saída da lista. Esse trabalho é um trabalho que é feito, ouvida a Autoridade Tributária, e os serviços de análise que na autoridade tributária têm como responsabilidade emitir opiniões sobre essas matérias.”

Mais: “A análise que foi feita, da mesma forma como foi feita para muitas outras jurisdições (…) concluía de forma positiva pela saída, possibilidade de saída, desses países da lista de paraísos fiscais”, afirmou Centeno.

E ainda: “A informação que tenho é a de que esses países, essas jurisdições estavam em condições de sair, isto não foi uma decisão sem análise feita pelos serviços, eles são sempre ouvidos.”

Das palavras de Centeno logo se pode concluir que a decisão que o Governo tomou de retirar aqueles três territórios da lista negra dos paraísos fiscais não foi feita sem a “análise” da Autoridade Tributária.

Quatro dias depois, no Parlamento Europeu, Fernando Rocha Andrade, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, diria algo ligeiramente diferente. Questionado pelos eurodeputados portugueses José Manuel Fernandes (PSD) e Nuno Melo (CDS) sobre se tinha pedido um parecer à Autoridade Tributária, o secretário de Estado respondeu assim:

Se mandei o projeto de portaria concluído para parecer do Centro de Estudos Fiscais e este produziu um documento sobre o projeto de portaria? A minha resposta é não, não foi assim que se fez, nem na minha leitura é isso que a lei obriga.”

É nesta resposta de Rocha Andrade que residem os fundamentos de PSD e CDS, que continuam a acusar o Ministério das Finanças (e, por maioria de razão, o Governo socialista) de estar a ocultar informação. Perante a pressão política e pública, o Ministério das Finanças apressou-se a desmentir que existisse qualquer contradição entre ministro e secretário de Estado.

Numa nota enviada ao Observador, o Ministério esclareceu que a participação do fisco neste processo se “insere nos procedimentos habituais seguidos pelo Governo na preparação de decisões semelhantes” e refere que seguiu uma informação da Autoridade Tributária transmitida ao anterior Governo que admitia a revisão da lista negra, em linha com as recomendações da OCDE”.

Mais: o gabinete de Mário Centeno negou a existência de qualquer ilegalidade, uma vez que a lei não determina que esse parecer seja obrigatório e citou um entendimento transmitido por escrito pela Autoridade Tributária ao anterior Governo, onde o fisco considerava “adequada a ponderação de conveniência de revisão e atualização da lista portuguesa dos países, territórios e regiões com regimes de tributação privilegiadas (…) tendo em consideração os desenvolvimentos recentes e os resultados das avaliações do Fórum Global”.

Como explicava aqui detalhadamente o Observador, o Ministério só não revelou quais foram os critérios e compromissos que justificaram, em concreto, a exclusão daqueles três territórios da lista de paraísos fiscais.

Finanças assumem decisão de excluir países da lista negra. Parecer do fisco não é obrigatório

Conclusão

De facto, Mário Centeno nunca afirmou que a decisão do Governo tinha sido tomada com base num “parecer” da Autoridade Tributária — o ministro das Finanças fala sempre em “análise” e em “ouvir”, retirando carga formal ao termo. O mesmo vale para Rocha Andrade: o secretário de Estado das Finanças nunca disse que a Autoridade Tributária não tinha sido ouvida, apenas assegurou que não tinha pedido um parecer formal ao Centro de Estudos Fiscais. Se é verdade que ambos podiam ter sido mais claros nas suas explicações, a grande dúvida parece resumir-se a uma questão de semântica. Não parece, portanto, haver uma contradição que justifique o comentários sobre se no Governo reina a “mais completa impunidade” e que “cada um diz o que quer”. É assim enganador sugerir que há uma contradição entre ministro e secretário de Estado. Questão diferente é saber se o Governo devia mesmo ter pedido um parecer formal à AT.

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