1. Tudo tão previsível. Atamancava-se um acordo, contava-se com a sempre afectuosa cumplicidade de Belém, montava-se um cerco chamado TSU ao PSD e evocava-se a “concertação” , talvez a pátria, certamente o interesse nacional. Depois a media ampliaria tudo isto, dividindo, adulterando, elegendo os “bons”, decretando os “maus” e alugando figurantes para o coro do cerco.

Como o Peneda, sempre ele. Lembra-me o Torres que jogava no Benfica e, com a sua alta estatura, evitava de cabeça que as bolas furassem a baliza encarnada. Era “o Torres, sempre ele”. Hoje também é “o Peneda, sempre ele”, mas ao contrário: sem cabeça e a meter golos na própria baliza. Um diabo, embora pobre.

2. O outro diabo, que é óptimo, aprecia estas tensões e é exímio debaixo de fogo, saiu por cima. Queriam-no vestido com a farda de contínuo de um frete político, deplorável equívoco a somar a outros, mas isso é a ficção onde vive enrolada a geringonça.

O mais pasmoso são porém duas coisas: primeiro o fingimento. Um acordo político, falsamente vendido como negociado (?), pretensamente já fechado (?) e supostamente abençoado do alto. E depois a arrogante convicção — nunca sequer maculada pela dúvida — de que era só Passos Coelho assinar de cruz esta trapalhada que “agradaria aos patrões” e pronto, rumava-se até ao próximo episódio. Isto é, à próxima pirueta, ao próximo equívoco.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sobre os patrões, já agora convém lembrar que não comovem especialmente: alguém os viu aflitos, constrangidos ou sonoramente discordantes da geringonça? Não. Um dia estão com a AD de Passos e Portas, no outro, o que lá vai, lá vai: a vida continua com socialistas e comunistas, porque não? Desde que tenham, de cada vez, o número do telemóvel do ministro das Finanças no bolso, e o chapéu de chuva do Estado, tudo segue. A quem infundem eles respeito, a quem surgem como espelho de uma elite sólida e substancial? Quem os considera com um grupo coeso, com norte e critério? Quase ninguém (há excepções, já sei, há sempre, são as que confirmam a regra).

Mais porém que chorar sobre o leite sempre derramado dos “patrões”, mais que detalhar a bondade deste suposto acordo de “concertação”para baixar a TSU a única coisa que interessa focar nesta história é que a realidade ultrapassou a ficção: o PS achou mesmo, achou a sério, que podia dispor (descartavelmente, claro), do apoio do maior partido da oposição. Sem consulta prévia ou sequer pré-aviso político. Do pé para a mão e como coisa natural, recomendável e verosímil de fazer em política. A ninguém acudiu a necessidade ou a utilidade políticas de conversa alguma entre ambos os partidos, as suas direcções ou os seus líderes.

No atabalhoamente em que vive, dividido e com futuro a prazo, o PS achou – oh maravilha reveladora – que tinha o PSD no bolso, não é verdade que o tema da TSU até lhes tinha sido caro e que acalentaram aplicar mesma medida? Era e não era, mas não sei o que mais surpreende neste falhanço: se o que ele revela politicamente do comportamento e do estado de espírito dos socialistas; se o facto de ninguém (aparentemente, pelo menos) de entre esse grande contingente que é o PS se afligir com o estado das coisas vigente. Pelo contrário.

3. Eis algumas dessas coisas: a alta das taxas de juro, por exemplo. Li que Ferro Rodrigues considera (santo Deus) que a governação, o país, a geringonça, o PS e as muletas radicais do Executivo, nada tinham ver como este galope. Nada? Nada: as culpas são alheias e externas, claro está. Sendo certo que poderá haver causas exteriores, falta confessar – e assumir – o resto que é muito: fosse a governação dona de melhores e mais avisadas escolhas em vez de obsessivamente reverter toda a herança recebida, começando aliás por delapidá-la, e as taxas de juro não exibiriam agora os algarismos assustadores que aí estão. De resto lembro aqui o exemplo da Espanha (podia dar outros na Europa), onde as taxas de juro não sobem e o investimento é (escandalosamente!) maior.

O pior é que muito provavelmente todos os “eles” responsáveis por este grande espectáculo de felicidade a crédito que é o nosso acreditam que Ferro sabe do que fala e tem razão no que diz.

O caso do IVA da restauração e da sua muito considerável descida para 13% também dá que pensar na sua flagrante previsibilidade. É que os resultados não coincidem hoje com a vozearia unânime que reclamava ontem tal medida, como garantia potenciadora de magníficos resultados no emprego. Segundo um responsável pela restauração, a mudança operada deu “oxigénio” (?) às empresas e serviu “para contratar um ou outro trabalhador”. Um ou outro, repare-se. É dizer do modo como essas mesmíssimas empresas têm vindo a utilizar o novo “oxigénio”.

E as capitações efectuadas pelo Governo? Os números que as contabilizam deixam qualquer um sem palavras. Outro truque mas este mete respeito. E agora? Como compensar – como e quando – os destinatários naturais daquele dinheiro?

Alguém tem ido aos hospitais? A comunicação social não concerteza. As exaltadas acusações a Paulo Macedo de que estamos todos bem lembrados e o afã, totalmente inverosímil de resto, em fazer dele o “assassino” do Serviço Nacional de Saúde desaguou agora num silêncio domesticado e num (muito) conveniente alheamento da questão. Pura e simplesmente ela deixou de existir. Os hospitais devem fortunas aos fornecedores? Há serviços que não estão a corresponder? Existem “urgências” entupidas ou paralisadas devido ao fecho de alguns centros de saúde? Listas de espera humilhantes para cirurgias? Má orientação e deficiente organização? Gastos a subir e qualidade a baixar? Paciência. Deixaram de ser notícia. Logo, “não existem”. Mesmo que o Governo ande a toda a hora com a palavra “justiça” na boca. (Para quem?)

4. E finalmente: o investimento. Não há. Continua a não “se” confiar. O país não “apetece”, os protagonistas da sua condução política parece que também nem apetecem nem cativam os investidores. Sem investimento substancial a ameaça de uma economia anã é cada vez mais real e realmente assustadora.

Esperam-se mais truques. De alguma coisa a geringonça se há-de alimentar para sobreviver.

Mas não tem importância. Há “serenidade”, garantida pelo estonteantemente pouco sereno Presidente da República.

5. É verdade e é vox populi (dita embora em tom baixo, como aqueles que mentem nas sondagens) que Passos Coelho não se saiu mal da empreitada da TSU. O PSD adorou vê-lo, a bancada rejubilou e seguiu-o, e os portugueses que mentem nas sondagens, tomaram boa nota. A questão desta “vitória” é interessante pelas outras que abre e desde logo a de saber o que fazer politicamente com ela.

Não basta ter todos os dias um bocadinho de razão a mais do que na véspera.