Calhou ir passar uns dias a Londres e chegar no dia do referendo. Das pessoas todas com que fui metendo conversa sobre o assunto, só encontrei um votante do Leave (e ainda no dia da votação; sem surpresas, foi o mais velho). Mas não queria de maneira nenhuma sair da União Europeia. Queria só ganhar capacidade negocial para impor limites à interferência britânica na vida dos ingleses e, se o referendo acabasse em Remain, preocupava-o que a partir daí a Grã-Bretanha fosse tomada como certa: tiveram a oportunidade de sair, não aproveitaram, agora sentem-se direitinhos e não revirem os olhos a cada novo delírio da Comissão ou do Parlamento Europeu. (As palavras ilustrativas são minhas, mas o sentimento é do meu interlocutor.)

Outro, taxista muito tatuado, estava abalado com o resultado e a demissão de Cameron e só repetia que era preciso respeitar a democracia. Dois irlandeses (da parte republicana), em duas lojas diferentes de Mayfair, estavam divertidos com o choque e pavor em que viam o Reino Unido. Outra pessoa dizia, no dia do resultado, ‘it feels weird in London today’. Uma portuguesa a trabalhar numa pizzaria contava que os amigos que votaram Leave não estavam a contar ganhar e já se tinham arrependido.

Mas o resultado foi o que foi, e não adiantam pesares ou arrependimentos. Tal como é inútil deambular à volta da evidência dos líderes do Leave, Boris Johnson e Nigel Farage, preferirem ter perdido e não magicarem o que fazer com a vitória. Farage já pediu no Parlamento Europeu um acordo de comércio – depois de tratar a EU como um Darth Vader supranacional, zona de comércio livre incluída. (A acrescer à desgraça, Farage corre o risco de abandonar o bem pago lugar no Parlamento Europeu para o desemprego, o que acontecerá se não conseguir expulsar do reino os malvados estrangeiros, quem sabe até reverter a invasão normanda.) Boris já garantiu (decidiu sozinho pelos quinhentos milhões de habitantes da EU) que os estrangeiros poderiam permanecer na Grã-Bretanha e os britânicos que trabalham e vivem no continente lá continuariam – no fim de uma campanha xenófoba que culpou os estrangeiros residentes no Reino Unido de todos os males desde as pragas do Egito. Mais uns dias e corremos o risco de assistir a um súbito amor britânico pelo trabalho empenhado dos parlamentares europeus em prol do tamanho adequado dos autoclismos e dos urinóis.

Com o Brexit, confesso que não sei qual será o caminho da União Europeia. Gostaria que ficasse combalida e regressasse ao espírito da CEE, assente no comércio livre e nas quatro liberdades de circulação: pessoas, bens, mercadorias e capitais. E que parasse com as aventuras integracionistas. Já agora, que percebesse que muita da regulamentação e legislação que produz é, no mínimo, ridícula e, no máximo, daninha. Sobretudo: que entendesse as razões das – como dizem os ingleses – classes trabalhadoras quanto à imigração. É muito bonito a quem vive numa zona cara de uma qualquer cidade europeia (e tem um trabalho protegido destas concorrências) insultar de racista e similares quem compete pelos empregos com os imigrantes e vê a sua zona de residência tornar-se irreconhecível. No caso particular britânico, a imigração islâmica está fora de controlo e é inteiramente compreensível que os autóctones não gostem de ter partes de cidades onde não entram nem as polícias nem as leis britânicas.

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Mas as consequências para o Reino Unido são uns claríssimos custos económicos. Sou sempre favorável a acordos que potenciem o comércio entre países. Ainda assim, mesmo que a EU e o Reino Unido acordem não aplicar tarifas alfandegárias (o que implicará a livre circulação de pessoas, o grande satã da campanha do Leave, com políticos conservadores a exercitarem linguagem que parecia ressuscitada da British Union of Fascists), o comércio entre as duas zonas tenderá a diminuir. Por pequenos fatores que serão dissuasores: empresas de seguros de créditos que encarecem os prémios para as trocas para fora da UE; maior dificuldade que novas pequenas empresas podem ter em participar em feiras e contactar clientes; incerteza e insegurança de um sistema legal fora da alçada da UE para dirimir conflitos; e um longo etc. Se preferirem (e Cameron diz que preferem) o controlo da imigração ao comércio livre, então serão um país pária, que terá de negociar acordos de comércio com o resto do mundo – levará tempo e nem terão o peso negocial de um mercado de 500 milhões de europeus.

O atual poder global do Reino Unido pode ser medido pela reação britânica às recentes intromissões do governo chinês em Hong Kong, que já destemidamente raptou no território donos de livrarias que vendem livros críticos de Pequim. O atropelo ao que foi negociado por Thatcher com os chineses é total, mas os britânicos ficaram calados e quietos. O tempo em que os britânicos impunham aos chineses – e ao mundo – os tratados desiguais já só existe nos livros de história.

Pelo que é provável que o Brexit seja um bom passo no caminho para a irrelevância. Como de resto foram tantas bravatas arrogantes britânicas. A mão pesada a sufocar o movimento de independência indiano e a recusa em oferecer-lhe estatuto de Domínio – e a Índia acabou republicana. A aliança contranatura com Estaline durante a segunda guerra mundial que entregou metade da Europa ao comunismo durante cinquenta anos. A insistência na divisão da Irlanda, para deitar pimenta nos ódios religiosos – que a partilha de poder entre Londres, Dublin e Bruxelas suavizava. Por aí adiante.

E nem chegamos a falar da libra em queda ou do investimento suspenso. Nem da city londrina, que John Le Carré colocou no livro (vem aí o filme) Um Traidor dos Nossos a ser salva, no pós-2008, por depósitos massivos de criminosos de proveniências sortidas para lavarem dinheiro. Terá o mesmo apelo, até para o crime, sem a livre circulação de capitais na UE?