Os cem anos da I Guerra Mundial passam discretos em Moçambique, apesar de terem garantido as atuais fronteiras do país e provocado imensas baixas, após um esquivo oficial alemão ter chegado a destinos impensáveis.
O tema está ausente dos jornais, não se preveem iniciativas para assinalar um século do conflito iniciado a 28 de julho de 1914 e a memória repousa simbolicamente numa das poucas estátuas sobreviventes em Maputo do período colonial, a chamada “Senhora da Cobra”, que presta homenagem “aos combatentes europeus e africanos da Grande Guerra” e votada à total indiferença.
“Tenho pena, esta guerra é encarada como algo que não diz respeito aos moçambicanos, uma miopia que ignora que grande parte da população do norte sofreu imenso”, comentou à Lusa o historiador e escritor João Paulo Borges Coelho, autor de “O Olho de Hertzog”, romance distinguido com o Prémio Leya, baseado nos diários do jornalista João Albasini e do oficial alemão Von Lettow-Vorbeck, que levou três mil homens do norte do país às portas de Quelimane, no centro.
“É a história dos outros”, considerou António Sopa, investigador moçambicano do Centro de Documentação da Universidade de Moçambique. “Não há grande interesse e não é só em relação à I Guerra, mas a toda a história colonial”, lamentou, apesar de o conflito ser ensinado a partir da 10.ª classe.
Há cem anos, tropas comandadas por Von Lettow-Vorbeck atravessaram o rio Rovuma, que separava o norte de Moçambique da África Oriental Alemã (atual Tanzânia), e massacraram as desprevenidas forças portuguesas.
Segundo António Sopa, Portugal acabou por se envolver nesta guerra para salvaguardar as suas colónias, enquanto as tropas alemãs se preocupavam em entreter as forças portuguesas e prevenir a deslocação de batalhões africanos para os teatros europeus.
“Lettow ia fugindo para manter a coesão das suas forças, o que fez admiravelmente”, continuou Borges Coelho, “por oposição às tropas portuguesas, que não sabiam bem o que estavam a fazer”. Na verdade, sentenciou, “era uma guerra em que ninguém sabia bem o que estava a fazer”.
A estratégia de Lettow-Vorbeck – “uma deambulação, não uma ocupação”, de acordo com o escritor moçambicano -, mais os seus três mil soldados alemães e milhares de africanos, arrastou quatro envios de impreparados corpos expedicionários portugueses da metrópole, dizimados inicialmente por doenças e pelas ações germânicas, levando frequentemente à debandada dos carregadores africanos.
“Há um sentido em La Lys [batalha em França], aqui não há. Aqui há sofrimento, tragédia e muito daquilo que veio depois na guerra colonial – mato, cobras, malária e pessoas sem chaves para ler a geografia e o ambiente que iam encontrar”, segundo Borges Coelho, para quem “este conflito teve mais carne esfacelada do que os seguintes”.
O norte de Moçambique mantinha uma colonização escassa, entregue a postos administrativos isolados e a uma Companhia do Niassa incapaz de manter uma presença sólida. No outro lado do país, a guerra era algo distante para os habitantes da capital, Lourenço Marques, apesar de o conflito ter introduzido na colónia a aviação militar e os primeiros camiões.
“Quando chegou a notícia da rendição alemã, Vorbeck já não estava sequer em Moçambique, mas na antiga Rodésia, lembra Borges Coelho, “esteve sempre a fugir, a fazer o que é hoje a guerrilha, enfrentando o inimigo no terreno que ele escolhia”. No final, “perdeu a guerra sem perder uma batalha”.
Apesar disso, o vice-presidente da Liga dos Combatentes, Fernando Aguda, considera que, à luz da recomposição das fronteiras do norte de Moçambique e expulsão dos alemães, a intervenção portuguesa e africana foi “um êxito do ponto de vista militar”.
Mas os custos foram elevadíssimos. De mais de 40 mil militares portugueses e africanos mobilizados para o conflito, registam-se, segundo dados recolhidos por Fernando Rita, docente de História Militar, 4.800 mortos, 1.584 feridos, 678 prisioneiros de guerra, 5.467 desaparecidos e 1.283 incapazes.