A coisa estava complicada. Já Gary Lineker o dizia. E a frase, por alguma razão, fez-se famosa. Os alemães por ali andavam, no relvado, à mistura com onze ingleses, a ver quem marcavam mais golos. Mas o antigo avançado explica melhor: “O futebol é um jogo simples. Vinte e dois homens correm atrás da bola e, no fim, ganha a Alemanha.” Drástico, mas, a 27 de junho de 2010, foi verdade. Não por culpa de Frank Lampard.

Em Bloemfontein, terra sul-africana, a Inglaterra chocava com a Alemanha, nos oitavos de final do Mundial. E lá estava o médio do Chelsea, a correr, passar a bola, a marcar viagens de ida e volta de uma área à outra e, pelo meio, a rematar sempre que podia. Aos 37 minutos, fê-lo com uma intenção — marcar golo. E conseguiu. A bola ali estava, à entrada da área germânica, sozinha à custa de um ressalto, a pedir novo dono. Lampard reclamou-a. Foi, apareceu, chutou, ela bateu na barra, chocou com a relva, entrou na baliza e ressaltou para fora dela.

Estava 2-1 para a Alemanha. E continuou a estar. No remate, a bola bateu na barra, foi à relva e nela tocou a uns bons dois palmos para lá da linha de baliza. “Ainda não vi a repetição, nem preciso de a ver. Foi golo, vi-o da minha posição. Não entendo como se erra neste caso”, frisou Lampard, ao sublinhar o óbvio, após o jogo que terminou num 4-1 com sorriso alemão. “É impossível que jogos tão importantes de um Mundial não tenham tecnologia”, queixava-se Fabio Capello, o então treinador da seleção inglesa.

Escândalo. Não se falou de outra coisa. No alto da bancada do estádio em Bloemfontein, alguém se levantava da cadeira. Não queria acreditar. Era Sepp Blatter, presidente da FIFA. Quando o suíço viu Jorge Larriondo, árbitro do encontro, olhar para o fiscal de linha e nada apitar, procurou uma televisão. Queria ver a repetição. Sim, ela confirmava-o: era golo. “Esse foi o momento em que pensei: ‘Não se pode deixar que algo similar aconteça no próximo Mundial”, disse, em julho de 2012, à BBC.

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E não deixou. Falou-se, discutiu-se, a UEFA e a FIFA fecharam-se em reuniões e as decisões foram aparecendo. Oito sistemas de linha de baliza começaram a ser testados e, em 2012, reduziu-se o grupo a dois: o Olho de Falcão e o GoalRef. O primeiro acabaria por vencer e estar no último Mundial, no Brasil, onde mostrou que dava resultado — e impediu que Karim Benzema pegasse no legado deixado por Lampard.

Aos 72 minutos do embate com as Honduras, o avançado foi à caça de um cruzamento. Apanhou-o, rematou a bola com o pé esquerdo contra o poste e, no ressalto, ela bateu nas costas de Noel Valladares, guarda-redes, e entrou na baliza. Dúvidas? Sim. Mas duraram segundos: a Goal Line Technology dissipou-as quando até nos ecrãs gigantes do estádio se viram as imagens virtuais que comprovaram o auto-golo do guardião hondurenho.

Escrevia-a história. Afinal, era o primeiro golo a ver validado, num Mundial, através da tecnologia de linha de baliza. O “dia histórico”, como lembrou Blatter, porém, foi outro. “Era um jogo tão importante e foi um caso tão flagrante de a bola cruzar a linha, que toda a gente reparou e tomou nota”, explicou Frank Lampard, ao recordar o golo que, porventura, mais queria ter marcado — o tal que “criou uma mudança” e “um bónus” no futebol. E que abriu a porta à tecnologia.

A mesma à qual Michel Platini, presidente da UEFA, se opusera sem hesitar. “Sou contra a entrada à força da tecnologia no futebol”, sublinhou, também em 2012, antes de, já durante o último Campeonato do Mundo, dizer que a entidade ainda não introduziu o sistema na Liga Europa e Liga dos Campeões porque “custaria muitos milhões” e prefere “utilizar o dinheiro em projetos de desenvolvimento [do futebol]”.

Já chegou a este ponto. Ao de o sistema, depois de um Mundial, poder aparecer em tudo quanto é competições europeias (incluindo o Europeu). Uma fogueira que conheceu o rastilho no 30.º golo que Frank Lampard não marcou pela seleção inglesa — da qual se despediu, na segunda-feira, ao fim de 106 jogos feitos. “Foi uma decisão muito difícil de tomar”, admitiu o inglês, que, durante o Mundial, já dissera que, “quando era miúdo, não conseguiria imaginar jogar sequer uma vez pelo [seu] país, quando mais fazê-lo por 100 ou mais vezes”.

Esteve em três Mundiais (2006, 2010 e 2014) e um Europeu (o de 2004, em Portugal, onde marcou três golos) e, após Steven Gerrard, é a segunda lenda a acenar à seleção inglesa após o desastre que foi a Copa do Mundo do Brasil — três encontros, duas derrotas e um empate. Foi lá, diante da Costa Rica, que Lampard vestiu a camisola branca pela última vez. E confirmou ser o jogador com mais remates feitos num Mundial (40) sem marcar qualquer golo.

Poderia ter sido o tal que entrou, mas não foi, contra a Alemanha. Preferiu antes desbravar caminho para que a tecnologia entrasse no futebol.