Parece que é desta. É uma das mais antigas bandeiras do PSD, que tem estado em banho-maria desde 2012, altura em que o Tribunal Constitucional chumbou o diploma que propunha a criminalização do enriquecimento ilícito. Agora, o tema regressa em força à Assembleia da República nesta reta final da legislatura, com todos os partidos a apresentarem iniciativas sobre a matéria. Com uma alteração: cai o termo “ilícito” para passar a chamar-se “enriquecimento não justificado”. A discussão ainda não está agendada, mas deverá acontecer em finais de março.

Certo é que o tempo urge, com as eleições à porta, e ainda só o Bloco de Esquerda deu efetivamente entrada com a proposta. O PCP fez a apresentação esta segunda-feira numa conferência de imprensa no Parlamento, sendo que o documento dará entrada na terça, e o PS já tem um texto base preparado (recuperado de 2012), mas tem adiado a entrega do diploma para março. Enquanto isso, a maioria ganha tempo para chegar a um entendimento, que se adivinha ser o mais difícil. Mas o que muda afinal?

Os partidos viram-se agora mais para a tutela fiscal e apertam o cerco aos cidadãos (em alguns casos não apenas aos políticos e detentores de cargos públicos), no sentido de criminalizar a omissão da declaração de rendimentos. O objetivo é aumentar o escrutínio entre os rendimentos declarados e os rendimentos de facto ostentados, mas fazendo-o sem que ponha em causa aquilo que esteve na origem do chumbo do TC. Isto é, sem violar os princípios da determinabilidade do bem jurídico e da presunção da inocência, que diz que não pode ser o cidadão a provar que não é culpado, mas sim o Ministério Público a fazer prova da ilicitude do ato.

Olhando para os projetos já apresentados, quer em documento definitivo quer em linhas gerais, conclui-se que o valor jurídico-penal passa a ser a transparência, no sentido em que as propostas visam a criação de um novo dever de declaração de rendimentos, além da habitual declaração para efeitos de IRS, e incorre em crime quem não cumprir com esse dever. O âmbito da lei termina precisamente ai, sendo que em caso de incumprimento ou suspeita de crimes associados (como corrupção), o caso passa para a alçada das Finanças e para o Ministério Público, que procede à investigação.

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O PSD, no entanto, insiste em ir “mais além”. Para a deputada social-democrata Teresa Leal Coelho, promotora do projeto que na semana passada explicou as linhas orientadoras no Fórum TSF, a presunção da inocência não é um direito “absoluto” e deve ser equilibrada com a necessidade de “transparência e probidade”. Por isso defende que a Constituição não deve proibir o Ministério Público de verificar de forma exaustiva a proveniência dos rendimentos dos cidadãos quando são “manifestamente excessivos”. O projeto de lei do PSD, no entanto, é o que parece chocar mais com as indicações dadas pelo TC em 2012. Deverá ser o último a entrar, uma vez que precisa do acordo do CDS, que já em 2011 teve algumas reservas.

O Observador sabe que uma primeira versão do documento chegou às mãos do grupo parlamentar centrista na semana passada e está a ser “estudada com cuidado” desde então. Segundo fonte parlamentar do CDS, o objetivo central é encontrar uma redação jurídica consensual que, acima de tudo, permita a luz verde do TC. “Não faz sentido insistir numa questão que o TC já mandou para trás”, diz fonte da bancada. Por enquanto, tudo parece correr bem ao ponto de haver entendimento até março. Na sexta-feira, pelo menos, o líder parlamentar do PSD, Luís Montenegro, quis acalmar os ânimos, dizendo aos jornalistas que as “conversações iam adiantadas”.

O PS também já fez saber que não vai perder o comboio. No final da reunião do grupo parlamentar socialista da última quinta-feira, Ferro Rodrigues congratulou-se por as iniciativas parlamentares estarem a ir ao encontro do que propunha o PS em 2011, e garantiu que a proposta socialista iria chegar à Assembleia a tempo de ser discutida juntamente com as restantes. Mais: mostrou-se “disponível” para viabilizar as propostas das outras bancadas para o debate se fazer em sede de especialidade. Em todo o caso, o PS vai basear a sua proposta num projeto de lei já antigo, apresentado em 2011 ainda sob o comando de António José Seguro. Mas só o fará lá para meados de março: só depois de um debate de atualidade sobre corrupção, que deverá ter lugar no Parlamento ou no dia 6 ou no dia 13 de março.

O objetivo do Parlamento, da esquerda à direita, parece ser o mesmo: criminalizar o enriquecimento não declarado. Mas do que já se conhece das propostas de cada um, antevê-se um extenso debate para chegar a um acordo amplo. O que quer afinal cada partido?

BE contra a “zona de ninguém”:

  • Alarga o leque de pessoas obrigadas a declarar rendimentos para todos aqueles que têm funções ligadas ao Estado: não só políticos e ministros, como também membros dos gabinetes dos ministérios e dos grupos parlamentares, peritos, consultores, pessoas nomeadas para cargos, ou seja, todos os funcionários que tenham relação com o Estado.
  • Considera enriquecimento injustificado sempre que haja uma “discrepância significativa” entre o rendimento declarado e o acréscimo patrimonial verificado. Por discrepância significativa o Bloco entende “uma diferença igual ou superior a 20% no caso de rendimentos superiores a 25 mil euros“.
  • Propõe a criação de uma entidade específica para fiscalizar a entrega das declarações e o seu conteúdo. Essa entidade estaria diretamente debaixo da alçada do TC. A ideia é dar força à ação fiscalizadora do Estado, uma vez que hoje já existe a obrigação dos agentes públicos se entregarem uma declaração sobre o seu património à entrada e à saída do mandato, mas o BE acredita que atualmente essas declarações não são validadas por ninguém. Pedro Filipe Soares fala numa “zona de ninguém”, onde não há verificação nem da entrega nem do conteúdo das declarações.
  • O que acontece se a tal entidade detetar casos de incumprimento? Avisa o TC, que encaminha o caso para o Ministério Público, que tem de investigar. Provada a omissão ou a falsidade, pode, no limite, levar à demissão da pessoa do cargo.
  • Não corre o risco de ser inconstitucional, como o último diploma? O BE acredita que não, porque assim já fica claro qual é o bem jurídico em causa, que é o dever de transparência. Se o agente público não declarar os rendimentos então está a incorrer em crime de enriquecimento não justificado. Assim o BE acredita que não haverá inversão do ónus da prova, porque na sequência da não declaração é o MP que tem de provar que houve ilícito, e não o cidadão.
  • BE quer que o Estado fique com 100% da riqueza que não for declarada.

PCP alarga a todos os cidadãos:

  • A principal diferença é o alargamento da base de incidência da lei: o PCP quer estender a obrigação de apresentar declaração a todos os cidadãos que tenham rendimentos acima de um determinado montante (que ainda está a ser estudado mas que não deverá ser menos do que o equivalente a 200 salários mínimos nem mais do que 400, ou seja, algures entre os 100 e os 200 mil euros).
  • A ideia é estabelecer uma nova obrigação legal: a obrigação de esses cidadãos apresentarem uma declaração anual de rendimentos ao fisco, assim como uma declaração caso tenham um “acréscimo anormal de rendimentos e património” e a justificação da sua origem. Esse acréscimo não representa, por si só, “qualquer presunção de ilicitude”. O que é ilícito é a não apresentação da declaração e da respetiva justificação da origem dos rendimentos.
  • Ou seja, o crime é a não apresentação da declaração de rendimentos. Se houver alguma ilicitude já ultrapassa o âmbito desta lei, e nesse caso é o MP que tem de investigar.
  • A proposta de pena para quem não cumpre o dever de declaração é de um a cinco anos de prisão, agravada para até oito anos nos casos de titulares de cargos políticos.
  • Mas há uma exceção: o cidadão pode ser dispensado de pena se provar que se esqueceu de apresentar a declaração por qualquer motivo “não doloso”. Nesse caso a pessoa será notificada, e pode corrigir a situação sem ser acusada.
  • Caso se verifique que o acréscimo de riqueza não foi justificado, o Estado pode vir a confiscar as verbas não declaradas, tal como já está previsto na lei para outros casos.

PSD quer MP a investigar “exaustivamente” origem dos rendimentos:

  • O projeto do PSD ainda não é conhecido, mas Teresa Leal Coelho quer dar “relevância jurídica” à proveniência dos rendimentos que sustentem um “determinado modo de vida” dito mais luxuoso, e que “causa alarme social”. Ou seja, quer que o MP possa exigir aos agentes públicos que expliquem a proveniência dos seus bens quando forem “manifestamente desproporcionados” face aos rendimentos declarados.
  • Depois da investigação do MP, só se se comprovar que a origem dos rendimentos não é lícita é que o arguido pode ser indiciado por crime de enriquecimento ilícito.
  • Não há inversão do ónus da prova, desta vez? O PSD acredita que não porque, uma vez sob suspeita, “é o Ministério Público que tem de provar que não há proveniência ilícita dos rendimentos”, e não o contrário. Ou seja, Teresa Leal Coelho acredita que assim não há violação da presunção de inocência.
  • Em todo o caso, o que o PSD quer é que os valores da “transparência e da probidade” se possam “sobrepor” ao direito relativo da presunção da inocência nos casos em que os indícios suscitem “efetivo alarme social”. “Em determinadas circunstâncias tem de haver um juízo de proporcionalidade que possa justificar uma situação de suspeição da prática do crime”, afirmou Teresa Leal Coelho aos microfones da TSF. É aqui que podem residir as maiores dúvidas sobre a constitucionalidade da proposta.

PS e a análise comparada de rendimentos:

  • Projeto inicial do PS prevê um alargamento das pessoas que devem ser obrigadas a declarar rendimentos: declaração de rendimentos deve aplicar-se a todos os que têm poder de decisão no Estado, desde titulares de cargos políticos a “altos dirigentes da administração direta e indireta e a dirigentes da administração local e regiões autónomas”. Luís Pita Ameixa diz que dirigentes de empresas públicas já estão abrangidos na lei.
  • Além das declarações que já têm de ser submetidas no início e no fim do mandato, o PS quer também acrescentar uma terceira declaração que deve ser apresentada três anos depois da cessação de funções. O objetivo é fazer uma “análise comparativa” das três declarações para ver se houve acréscimo súbito de património, explicou Pita Ameixa ao Observador. Quem não apresentar as declarações devidas incorre no crime de desobediência, e quem apresentar mas forem detetadas discrepâncias assinaláveis, o TC é obrigado a comunicar o caso à Autoridade Tributária, que avança com um processo onde é exigida prova dos rendimentos ou “manifestações de fortuna”. Atualmente só pode haver investigação se houver queixa.
  • PS admite que, em caso de condenação, possa resultar na “perda definitiva de bens a favor do Estado”.

Em 2011, todos os partidos votaram a favor do diploma da maioria que criminalizava o enriquecimento ilítico, à exceção do PS. Cavaco Silva, no entanto, teve dúvidas quanto à garantia de que “não havia riscos de lesão dos direitos fundamentais dos cidadãos” e pediu a fiscalização preventiva do documento.

A 4 abril 2012 os juízes do Palácio Ratton entenderam que o diploma violava “os princípios constitucionais da presunção da inocência e da determinabilidade do tipo legal” e a proposta de lei acabou por cair. Os juízes discordaram do facto de ser o arguido a justificar a proveniência dos bens por considerarem que isso violava direitos e garantias, como a presunção da inocência, e, por outro, consideraram que não havia bem jurídico atendível, ou seja, que não havia valor que justificasse a autonomização do crime de enriquecimento ilícito.

Agora, o Parlamento tenta em peso outro caminho. Tanto os partidos da maioria como o PS afirmam ter recebido com “satisfação” os projetos de lei dos restantes partidos. Teresa Leal Coelho fala mesmo na possibilidade de chegar a um “texto de substituição” do diploma chumbado, com contributos de todas as bancadas. Já o PS, vê os avanços dos restantes como um sinal de que eram os socialistas que “tinham razão” há três anos. Todos, sem exceção já mostraram “abertura” para analisar as propostas de cada um.