Corpos mutilados pendurados de viadutos ou emparedados em casas, alçapões armadilhados com explosivos, civis armados e perigosos, tropas a entrar em túneis secretos no deserto, agentes do FBI, da CIA e mercenários a trabalhar juntos numa task force sob o radar da legalidade. O cenário de “Sicario”, do canadiano Denis Villeneuve (“O Homem Duplicado”, “Raptadas”) podia ser o Afeganistão ou o Iraque, e o inimigo os talibãs, os insurrectos saddamistas, ou até mesmo os militantes do ISIS.

Mas não, estamos na fronteira entre os EUA e o México, com o mítico Rio Grande pelo meio, paisagem familiar de muitos westerns — até “westerns” contemporâneos, como “Este País não é para Velhos”, dos irmãos Coen –, onde o governo norte-americano trava um outro tipo de guerra, contra os astutos, bem informados e armados, tecnologicamente equipados e sanguinários cartéis da droga mexicanos, que não hesitam em torturar e matar mulheres e crianças. E tal como aquelas, esta é uma guerra que dificilmente, ou mesmo nunca, será vencida, e onde não há pejo em recorrer a monstros “aliados” para combater e exterminar os monstros inimigos.

[Veja o trailer de “Sicario”]

No subgénero dos cartel movies, em que “Sicario” se inclui, e que abrange filmes quer sobre a mafia colombiana da droga, quer sobre a mexicana, encontramos títulos de qualidade e interesse tão díspares como “Traffic”, de Steven Soderbergh, “Profissão de Risco”, de Ted Demme, “O Conselheiro”, de Ridley Scott, “Escobar-Paraíso Perdido”, de Andrea DiStefano, o documentário “Cartel Land”, de Matthew Heinneman, “Heli”, de Amat Escalante, “Miss Bala”, de Gerardo Naranjo (estes dois apresentando pontos de vista mexicanos sobre o tema), séries como “Narcos”, de José Padilha, produzida pela Netflix e até mesmo, se quisermos, o avôzinho deles todos, “Scarface — A Força do Poder”, de Brian De Palma.

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A soturna, inexorável, pulsante e pessimista fita de Villeneuve, escrita por Taylor Sheridan (“Sons of Anarchy”), passa a ser uma das melhores do lote, conseguindo respeitar as coordenadas do thriller de acção sem patinhar nos lugares-comuns, e contemplar ao mesmo tempo uma componente moral que não se confunde com o moralismo hollywoodesco pronto-a-usar.

[Veja a entrevista com Denis Villeneuve]

https://youtu.be/eB3YaLsbZag

Emily Blunt é Kate Macer, uma agente do FBI que, depois de uma macabra descoberta numa casa no Arizona durante uma operação de resgate de reféns, que redunda na morte de dois agentes, é chamada para fazer parte de uma unidade especial que é uma mixorofada de siglas (CIA, DEA, SWAT, etc.), onde espera vingar a morte dos dois colegas e fazer algo mais do que “arranhar a superfície” na luta contra os cartéis da droga, como diz o seu parceiro Reggie (Daniel Kalluya). O seu contacto, e chefe, na unidade, é Matt (Josh Brolin), que fala por meias-frases, tiradas gozonas, elipses e usa havaianas, e dela faz parte também o lacónico e misterioso Alejandro (Benicio Del Toro), ambos auto-nomeados “consultores do Ministério da Defesa”).

[Veja a entrevista com Emily Blunt]

https://youtu.be/dR9paySzhdY

A decidida e corajosa Kate é deixada a apanhar bonés, até acabar por perceber que a unidade é o equivalente, na guerra às drogas, das black ops levadas a cabo pelos EUA no Afeganistão e Iraque, missões clandestinas multiparticipadas que não têm existência oficial, onde os fins (neste caso, apanhar um dos líderes do cartel) justificam os meios, a lei é ignorada ou contornada e a consciência não é para ali chamada.

O que Matt quer dela é tão só e apenas que vá de boleia e dê no fim uma demão de legalidade aos “procedimentos” que Kate não pára de pedir que lhe expliquem ao longo da acção. Heroína impotente e pião das nicas contra sua vontade, ela é também a consciência moral na terra de ninguém ética de “Sicario”. E é deixada literalmente a pregar no deserto.

[Veja a entrevista com Josh Brolin]

Apoiado de novo na fotografia “naturalista” de Roger Deakins, que sublinha o horror onde ele surge mas também destaca a beleza onde ela se encontra (uma paisagem desértica de contornos alienígenas, uma troca de tiros à distância no lusco-fusco), e na banda sonora de Jóhann Jóhannsson, que parece ter sido cooptada a um filme de terror sobrenatural, Denis Villeneuve faz figura de filho espiritual de Michael Mann e Kathryn Bigelow, seja quando filma o que parece ir ser mais uma perseguição automóvel mas se torna num engarrafamento onde a violência se manifesta de forma cirurgicamente rápida e brutal (afinal, estamos entre profissionais de topo deste ofício), seja quando segue uma missão nocturna por baixo da terra com a visualidade das câmaras de infravermelhos high tech dos participantes e nos deixa tão à nora de referências e às apalpadelas quanto eles. Villeneuve é um daqueles realizadores que não se limitam a fazer de nós espectadores do carro da acção. Ele senta-nos no banco da frente e, não contente com isso, põe-nos no lugar do condutor.

[Veja a entrevista com Roger Deakins]

Se Emily Blunt e Josh Brolin são impecáveis, ela numa Kate tensa de impaciência e de indignação, uma mulher de pensamento recto e acção decidida a quem baralham a cabeça, tolhem os movimentos e agridem o sentido de decência, ele num Matt cheio de um bom humor esquivo que oculta uma motivação impermeável a qualquer argumento contra o seu pragmatismo eficiente e amoral e os seus métodos extra-legais, Benicio Del Toro faz de Alejandro o centro de gravidade distorcido e o sol negro de “Sicario” (ou não fosse ele a dar o título ao filme).

[Veja a entrevista com Benicio Del Toro]

https://youtu.be/5r2gFT5eLfY

Del Toro é um actor que é tanto mais expressivo e sugestivo quanto mais económico é com as palavras, os gestos, as acções, quando sussurra em vez de gritar, e aqui, até a sua brutalidade é parcimoniosa. Alejandro começa por ser um enorme ponto de interrogação, e pouco a pouco o filme vai pingando, também parcimoniosamente, a informação apenas necessária sobre ele. Até percebermos que é o “monstro” dos “nossos”, como poderia bem dizer Matt. Um monstro ferido no seu mais íntimo por uma tragédia pessoal, que o tornou ainda mais insensível e implacável, capaz de multiplicar por dez, cem, mil, o mal que lhe fizeram.

Como poderia Kate presumir que conseguiria fazer vingar o seu apego aos “procedimentos”, à legalidade, ao combate com regras, nesta guerra clandestina e travada à margem de tudo, impossível de ganhar, que faz de “Sicario” um western contemporâneo niilista e deformado, onde os bandidos são selváticos, os xerifes infrequentáveis e o herói (ou heroína, neste caso) está entalado, manietado e em perigo de vida entre ambos.