Não houve gritos, não houve insultos, não houve sequer grandes discordâncias. O debate público sobre a requalificação do eixo entre o Marquês de Pombal e Entrecampos na Assembleia Municipal de Lisboa, esta terça-feira, foi muito mais pacífico do que o plenário de há umas semanas, no qual os moradores das Avenidas Novas confrontaram o vereador do Urbanismo com muitas críticas e dúvidas.

Logo a abrir a discussão, o vereador do CDS na Câmara Municipal de Lisboa trouxe um bocadinho mais de gasolina para uma fogueira acesa, ao apresentar um projeto alternativo ao do executivo socialista. Esse projeto, que o Observador já antecipara de manhã, contempla a construção de um túnel entre Picoas e a Avenida da República, criando assim praticamente um contínuo de túneis entre as Amoreiras e o Campo Grande. A ideia mereceu a rejeição de grande parte dos lisboetas que intervieram na sessão e uma resposta taxativa do presidente da autarquia. “Isso é uma visão de há 40 anos”, atirou Fernando Medina, defendendo que é necessária “uma nova ambição” para Lisboa. O autarca classificou como um “erro conceptual” considerar que o eixo central da cidade começa no fim da Autoestrada 5 (A5) e termina no Campo Grande. Para a câmara, o eixo central “inicia-se na Baixa e termina na Alta”, explicou Manuel Salgado, vereador do Urbanismo.

A questão túnel acabou por ser dominante num debate que poucas novidades trouxe: os moradores da zona continuam preocupados com a diminuição de estacionamento que está prevista, os utilizadores de bicicletas insistem em que as obras devem começar tão rapidamente quanto possível e a câmara promete ouvir todos para recolher impressões que melhorem o projeto final. Daqui a 23 dias, termina o concurso lançado para a empreitada. Em 2016, há obras no terreno — com o mínimo impacto possível, assegurou Salgado –, e em 2017 está pronta a transformação da zona.

Túneis e ciclovias foram pontos dominantes

No estado em que está, a Avenida da República “quase que envergonha a cidade”, afirmou Manuel Salgado logo aos primeiros minutos, apresentando num PowerPoint as principais mudanças previstas para a área: passeios mais largos, menos faixas de rodagem, mais árvores, mais ciclovias. Tudo para “atenuar os efeitos das alterações climáticas” e “favorecer a vida ativa”, contribuindo ao mesmo tempo para “valorizar o comércio de rua” e “reduzir a sinistralidade” que, em particular na Avenida da República, é bastante elevada.

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9,4 milhões de euros é o custo previsto das obras.

Câmara Municipal de Lisboa

Até aqui, todos de acordo. As divergências estão, como quase sempre acontece, no modo de alcançar os objetivos. Pompeu Santos, engenheiro que foi responsável pela ideia de construção de um túnel no Saldanha aquando da candidatura de Santana Lopes à autarquia em 2009, voltou a defender a ideia esta terça-feira. Segundo ele, apenas 1,5 quilómetros entre as Amoreiras e o Campo Grande não têm túnel, uma obra que considerou imprescindível. Foi secundado apenas por dois dos cerca de 30 intervenientes no debate e pelo vereador do CDS. A assistir, estava uma plateia de mais de 100 pessoas.

Estou em profundo desacordo com o meu colega Pompeu Santos: aquilo que se procura é exatamente evitar que os carros venham ao centro da cidade”, disse Fernando Nunes da Silva, deputado independente e ex-vereador da Mobilidade.

“Não faz sentido nenhum” construir um túnel, diria depois Salgado aos jornalistas. A posição foi praticamente unânime entre os lisboetas e deputados municipais que falaram, mas o projeto da autarquia não deixou, ainda assim, de merecer reparos. A questão das ciclovias foi outra das mais abordadas. “Se eu digo não à ditadura do automóvel, também digo não a outras ditaduras, aparentemente mais suaves”, disse José Pedro Dinis, representante do CDS na freguesia das Avenidas Novas. O projeto da câmara prevê a criação de duas ciclovias, uma para cada sentido, dos dois lados das avenidas Fontes Pereira de Melo e da República. O vereador do CDS na autarquia considera um exagero e não foi o único a opinar nesse sentido. “Não há necessidade de construir duas ciclovias. O dinheiro que se vai gastar serviria certamente para fazer mais uns quilómetros para ligar ciclovias já existentes”, defendeu Álvaro Lopes, do Núcleo de Cicloturismo de Alvalade. 

Transportes públicos e uma questão de confiança

Nas diferentes intervenções, os deputados municipais da esquerda à direita foram consensuais quando à necessidade de articulação deste projeto com uma estratégia mais vasta. “É preciso fazer um esforço maior para a redução do fluxo de entrada de carros na cidade”, defendeu Ricardo Robles, do Bloco de Esquerda, para quem “é preciso olhar para a cidade como um todo”. E isso passa, muito concretamente, por uma aposta nos transportes públicos, que, na opinião do executivo e dos partidos de esquerda, não podem sair da esfera pública.

“Pugnaremos junto do próximo Governo, qualquer que ele seja, pela devolução dos transportes públicos à cidade de Lisboa”, respondeu Fernando Medina.

O autarca defendeu ainda que, para afastar os automóveis do centro da cidade — objetivo que definiu como prioritário — é necessária a “correção de uma obra que não está bem feita: a ligação da A5 ao Eixo Norte/Sul” e ainda o desvio do trânsito da Segunda Circular para a CRIL, que está hoje subaproveitada, disse. 

Focando-se precisamente nas muitas alterações à mobilidade que Lisboa está a precisar, segundo opinião do próprio, o especialista em transportes Carlos Gaivoto aconselhou prudência à câmara neste assunto. “Estas questões são sérias de mais”, disse, desafiando a autarquia a mostrar eventuais estudos de custo-benefício que existam, os quais disse não conhecer. Precisamente pela seriedade do tema, uma munícipe deixou um aviso. Alegando que existe “uma falta de confiança dos lisboetas nos projetos urbanísticos da câmara”, Teresa Sá e Melo, que se mostrou revoltada por não conseguir descer a Av. Fontes Pereira de Melo com um carrinho de bebé, disse à câmara: “É preciso parar com esta desconfiança dos lisboetas”.