Numa cena de “Bons Rapazes”, o novo filme do argumentista e realizador Shane Black (“Kiss Kiss Bang Bang”), o detetive privado Holland March, interpretado por Ryan Gosling, tenta partir a murro o vidro da porta das traseiras de um bar, mas rasga uma veia que começa a jorrar sangue em jato contínuo e é transportado para o hospital numa ambulância a estrebuchar e a berrar que não quer morrer, como se fosse uma criancinha. Noutra cena, March e o seu parceiro Jackson Healy (Russell Crowe) estão, em casa daquele, sob o fogo cerrado da metralhadora de um assassino profissional psicopata. Healy fica sem balas e pede a March que lhe atire uma pistola, o que este faz, só que a arma, em vez de ir parar às mãos do amigo, sai em voo pela janela fora.

No meio de tanto filme de super-heróis com corpo de gigante e cérebro de anão, e de tanta comédia debilóide adolescente ou com adultos que se portam como adolescentes, “Bons Rapazes”, produzido pelo inafundável Joel Silver, parece uma rajada de ar puro que entra por uma sala a cheirar a mofo e a pé. É uma comédia de ação pachola e acelerada ao gosto da tradição, um “buddy movie” esfuziante, esgargalado e com a fralda de fora, como não víamos desde a série “Arma Mortífera” (que nem por acaso, foi escrita por este mesmo Shane Black), protagonizado por dois heróis humanos, falivelmente humanos, mesmo muito trapalhões, benza-os Deus.

[Veja o “trailer” de “Bons Rapazes”]

O Holland March de Ryan Gosling, um viúvo que vive com a filha adolescente, parece ter genes de Stan Laurel, o Estica, e do cão Droopy de Tex Avery, e a sua competência como detetive particular é muito questionável. O Jackson Healy de Crowe (que engordou uns bons quilos para interpretar a personagem) é um matulão recém-divorciado a quem a mulher ficou com a casa e o dinheiro, e aluga os músculos a quem precisa deles, por exemplo, para partir a cara ao pedófilo do bairro. Encontram-se quando a misteriosa rapariga que March está a investigar contrata Healy para lhe partir um braço (o que este faz tendo a cortesia de lhe dar a informação anatómica da lesão, para depois transmitir ao médico). E juntam forças quando percebem que estão ambos a ser enganados e o caso é muito maior e mais grave do que parece, e vai deixando um rasto de cadáveres por Los Angeles.

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[Veja a entrevista com Shane Black e Joel Silver]

Black situou a ação de “Bons Rapazes” nos anos 70, o que permite às personagens fumar à vontade e beber quanto lhes apetece, e à intriga estar relacionada com a indústria nascente da pornografia (a sequência de abertura do filme, e a da festa em casa do produtor de fitas X, só por si valem o preço do bilhete) e com o início dos protestos organizados contra a poluição do meio ambiente e a sua relação com a indústria automóvel. Inteligentemente, Shane Black não atafulhou o filme com objetos, referências e piscadelas de olho aos “seventies” e à sua cultura “pop”, nem com canções dessa berrante década. A época é dada com competente e convincente discrição, a música surge quase sempre como pano de fundo e as piscadelas de olho são poucas mas boas (ver a piada recorrente sobre a série de televisão “Os Waltons”).

[Veja a entrevista com Russell Crowe e Ryan Gosling]

https://youtu.be/4thvPPWVPkw

O tortuoso enredo mete March e Healy numa sucessão de perseguições, cenas de pugilato e tiroteios (com duas ou três valentes explosões pelo meio), onde nunca falta o humor negro nem um pouco de nudez gratuita, e põe muita munição cómica na boca de ambos. Shane Black até se dá ao luxo de incluir uma sequência onírica saída direitinha de um filme de David Cronenberg. Gosling e Crowe, quais Dois Estarolas da investigação particular, fazem uma dupla quimicamente compatível e com alto valor “slapstick” e balístico, como não se via desde a já citada trilogia “Arma Mortífera”. Kim Basinger surge numa personagem secundária que talvez não seja quem aparenta, e há uma jovem revelação australiana chamada Angourie Rice, que brilha com toda a força no papel de Holly, a precoce, faladora e irrequieta filha de March. Holly tem mais integridade que o pai e o parceiro juntos e é a consciência do filme, o Grilo Falante sob a forma de uma miúda de 13 anos.

[Veja a entrevista com Angourie Rice]

https://youtu.be/aaiOWLfp9ac

Numa das melhores e mais inesperadas sequências de “Bons Rapazes”, depois do Salão Automóvel de Los Angeles ter sido posto em polvorosa de murros, quedas de varandas altas, balázios e explosões, e quando Healy se apresta para, finalmente, “despachar” com um tiro o assassino psicopata, a pespineta Holly dissuade-o de o fazer, falando-lhe à consciência, dando-lhe um ralhete e convencendo-o a deixá-lo para a polícia em vez de o enviar para a vida eterna (diga-se de passagem que o dito vilão já está consideravelmente amolgado). A ideia original de Shane Black era que “Bons Rapazes” fosse uma série de televisão. Ainda bem que não vingou e acabou por viajar para o cinema, porque Hollywood bem que estava a precisar de um filmaço destes.